Por: Vladimir Safatle
Uma das questões maiores de nosso tempo
é a relação entre religião e política. O filósofo italiano Giorgio Agamben, em
seu livro O Reino e A Glória, foi mais
longe do que o habitual no desvelamento da dependência entre as estruturas
institucionais dos Estados laicos e as construções teológicas. Maneira de dizer
que o campo político moderno não é o campo da laicização da sociedade, mas a
esfera da secularização de construções teológicas.
Uma das consequências desse raciocínio está na
consciência de que talvez nossas sociedades ocidentais nunca consigam se livrar
da matriz teológica que nos constituiu. O que coloca questões importantes para
aqueles que
compreendem como o desafio maior para os processos
de modernização social encontra-se na desativação do conservadorismo político,
moral e de costumes patrocinado atualmente pelas igrejas.
Nesse sentido, vale a pena insistir em uma
estratégia que não consiste simplesmente na desqualificação dos discursos
teológicos enquanto matrizes para a vida social. Mais produtiva seria a
exploração de suas tendências contraditórias.
Vejamos, por exemplo, o caso dos protestantes.
Atualmente, o Brasil encontra-se diante da recrudescência da força política das
igrejas evangélicas, normalmente associadas a uma pauta radicalmente
conservadora em matéria de costumes e política. O que não poderia ser
diferente, uma vez que as missões evangélicas que vieram para o Brasil nas
primeiras décadas do século XX partiram, principalmente, de grupos profundamente
ancorados no Sul dos Estados Unidos. Os mesmos grupos que hoje constituem
o Bible Belt, dando suporte às alas mais
conservadoras do Partido Republicano, como as famosas igrejas batistas do Sul.
No entanto, a tradição protestante
contém, em seu interior, uma impressionante prática revolucionária, isso ao
menos desde Thomas Müntzer, reformador líder da revolta dos camponeses contra a
opressão pelos príncipes alemães. A esse respeito, Ernst Bloch escreveu um belo
livro: Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução.
Lembremos ainda como são os protestantes que
enunciarão, ao menos no Ocidente, a centralidade do direito de resistência
contra a opressão. Longe de ser a simples enunciação dos direitos da
individualidade liberal-burguesa, ele se funda na noção de que os valores
maiores presentes na vida social podem ser objeto de problematização e crítica,
o que exige a institucionalização da liberdade.
Em Calvino encontramos uma afirmação como: “Os
governantes de um povo livre devem envidar todo esforço a fim de que a liberdade
do povo, pelo qual são responsáveis, não desvaneça de modo algum em suas mãos.
Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem, devem ser
considerados traidores da pátria”. É fato que ele evita generalizar tal
consideração sob a forma de um direito geral de resistência. No entanto, a
noção calvinista mostra claramente a possibilidade de uma crítica ao poder
feita em nome de exigências de institucionalização da liberdade.
Essa crítica será radicalizada por setores do
pensamento reformado, como o próprio Müntzer e alguns reformadores puritanos
ingleses. A partir deles, o direito de resistência aparece como fundamento da
vida social. Essa abertura do pensamento reformado ao problema da resistência
alcançará o pensamento político. Ela será radicalizada pela tradição
revolucionária francesa, que não deixará de ser influenciada pelos huguenotes.
Lembremos como uma parte significativa da luta contra
a discriminação e pela desobediência civil nos EUA foi feita por pastores
protestantes, como Martin Luther King Jr. Ele não lutou apenas pelo fim da
discriminação contra os negros, mas também contra a desigualdade econômica e
contra a Guerra do Vietnã, que ele compreendia claramente como uma guerra
imperialista, a ponto de defender a reforma agrária no Vietnã do Norte.
É de Martin Luther King a afirmação de que há algo
errado com o capitalismo. “Deveria haver uma melhor distribuição de recurso e
talvez a América deveria ir em direção ao socialismo democrático”. Neste
momento em que uma faixa dos protestantes parece abraçar despudoradamente
causas conservadoras, valeria a pena meditar sobre essa outra tradição que os
constituiu.
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