Crise de representatividade!

   Por: Helder Caldeira
Hoje quero propor aos estimados leitores um exercício de (des)alienação: enquanto lê estas mal digitadas linhas, ligue a televisão em algum dos canais abertos, folheie qualquer jornal ou revista de grande circulação no país e/ou abra a página desses veículos de comunicação na internet. Feito isso, vá às redes sociais e destine apenas dez minutos do seu precioso tempo para verificar, em plano geral, as últimas postagens. Por imediato, notar-se-á um abismo. Cinco minutos depois é possível enxergar um paralelismo. Ao final de dez minutos, algum “notável” — ou o “ghostthinker” de alguma celebridade — cria hastags, os universos se misturam e a praça é tomada por rinocerontes de Ionesco.

De repente, graças aos “notáveis” — nada originais — de uma academia em frangalhos, virou modismo afirmar que “o Brasil vive uma crise de representatividade”. Congresso Nacional:#NãoMeRepresenta; Dilma Rousseff: #NãoMeRepresenta; Renan Calheiros: #NãoMeRepresenta; governador Sérgio Cabral Filho: #NãoMeRepresenta; Voto Secreto: #NãoMeRepresenta; Deputado-presidiário: #NãoMeRepresenta; Manifestante mascarado: #NãoMeRepresenta; entre outras assertivas do gênero, por óbvio seguidas por milhares de curtidas e compartilhamentos de quem se sente representado pela hastag #NãoMeRepresenta.

O jornalista “almost famous” — coitadinho! — corre contra o tempo para alimentar as manchetes do dia seguinte. Disfarçado entre os black blocs mascarados — microfone sem canopla, nenhum crachá, nada que identifique seu empregador, numa espécie de colete à prova de balas versão 2013 —, tenta registrar explosões de vandalismo que possam justificar a criação de uma legislação proibindo mascarados nas ruas.

Depois do sufoco — e de alguns sopapos e pontapés —, enquanto escreve a matéria para as páginas de amanhã ou edita o vídeo para o noticiário matutino, o jornalista descobre pelas redes sociais que otrending topic do momento é a “crise de representatividade” gerada pelo anúncio de que Ben Affleck será o próximo Batman, paradoxalmente um dos super-heróis mascarados — quase um black bloc — que quebra tudo em nome da justiça e coleciona milhões de admiradores ao redor do planeta. De quebra, uma notificação revela que Caetano Veloso — sem lenço e sem documento — publicou uma foto fantasiado de manifestante mascarado. #AssimNãoDá, posta o jornalista em sua timeline, imediatamente curtido e compartilhado por dezenas que ignoram o sentido daquele protesto solitário. “Solitário quem, cara pálida?! Tenho 218.435 seguidores!”#AssimNãoDá².


Não impressiona, portanto, que três meses depois de monumentais manifestações sacudirem os pilares da República, antropólogos, filósofos, cientistas, juristas e pagodeiros ainda estejam ocupando os meios de comunicação na tentativa de explicar o vazio e a violência do Dia da Independência. Enquanto isso, aqueles que ontem estavam cobrando menos investimentos na Copa do Mundo e mais dinheiro pra saúde e educação, pularam pra hastags sobre a Miley Cyrus sem calcinha, a espionagem norte-americana, a Valdirene cantando com Roberto Carlos, alguma outra bizarrice da Lady Gaga e#PorAíVai!

É provável que na quarta-feira (18), os trending topics sejam #JulgamentoDoMensalão e#CelsoDeMello, seguido de #Canalha ou #SalvadorDaPátria, dependendo do voto que irá proferir no Supremo Tribunal Federal, podendo, ou não, levar multidões às ruas novamente. Outros assuntos virão e a vida — real e virtual — seguirá seu fluxo em debates seríssimos que duram uma fração de minuto e podem ser resumidos em 140 caracteres. Daí, o “ghostthinker” de alguma celebridade publica supostas citações da Clarice Lispector ou do Arnaldo Jabor e lá se vão algumas centenas de curtidas e compartilhamentos. São os rinocerontes da contemporaneidade.

Não por acaso, o dramaturgo romeno Eugène Ionesco abre sua insólita peça “O Rinoceronte” com uma merceeira falando ao marido sobre uma dona de casa que atravessa a praça tendo em mãos uma cesta de provisões vazia e um gato:“Ah, olha aquela lá! Ficou muito importante. Já não compra nada da gente!”. Ao fim do texto teatral, Bérenger, um humilde funcionário desprezado pela noiva por ser o único imune à metamorfose coletiva, lamenta em monólogo: “Eles é que são belos. Ah, como eu gostaria de ser como eles! Mas, infelizmente, não tenho corno! Como é feio uma testa lisa. Eu precisaria de um ou dois, para levantar os meus traços caldos. (…) Não consigo dar barridos, só dou berros. Berros não são barridos! Como eu me arrependo! Devia ter seguido todos eles enquanto era tempo. (…) Infelizmente nunca serei um rinoceronte. Gostaria muito… gostaria tanto… mas já não posso. Tenho vergonha! Como eu sou feio! Infeliz daquele que quer conservar sua originalidade!”.
Ao fim do exercício de (des)alienação, eu lhes questiono: caríssimos leitores plugados às praças, quanto lhes resta de originalidade? Porque já faltam tetas para amamentar tantos ungulados e é preciso desmamar nossos rinocerontes.

Por: Helder Caldeira é escritor, jornalista político, palestrante e conferencista, diretor de jornalismo da TV Mutum SBT e editor-chefe da revista Capa. Autor dos livros‘ÁGUAS TURVAS’ e ‘A 1ª PRESIDENTA’.
www.heldercaldeira.com.br – helder@heldercaldeira.com.br


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