“O
governo trata Libra como se fosse uma padaria ou pizzaria.”
Professor
titular da USP e um dos mais reconhecidos cientistas brasileiros na área
de energia, Ildo Sauer foi diretor de gás e energia da Petrobras
durante o primeiro governo Lula. Nessa entrevista, critica o
leilão de Libra e propõe um modelo alternativo.
P: Como
você avalia o modelo criado pelo Brasil para exploração e utilização dos
recursos do pré-sal? O país vai utilizar bem essa riqueza?
R: Não.
O modelo de concessões formulado pelo governo neoliberal de FHC, numa época em
que ainda se justificava no discurso a possibilidade de um risco genérico
exploratório para encontrar petróleo, não era o melhor. Naquele tempo, o modelo
adequado seria a partilha da produção, com a Petrobras comandando.
Eu
defendi transformar concessão em partilha. No momento em que se conclui com
sucesso a definição de uma nova província de petróleo no pré-sal, nem o modelo
de concessão nem o de partilha servem.
Quando
já há uma confirmação de sucesso e com pouco investimento se pode descobrir o
volume de petróleo disponível a ser produzido, o melhor modelo é o monopólio
público de uma empresa puramente estatal ou o modelo de prestação de serviços
em que uma empresa, preferencialmente uma estatal híbrida igual à Petrobras, é
contratada para fazer o serviço de delimitação do volume de recursos. Depois se
contrata essa empresa num regime de prestação de serviços, remunerando-a
adequadamente por todos os custos.
Nós temos
50 bilhões de barris já confirmados, mas podemos chegar a 100, 200 ou 300
bilhões.
O
governo não autorizou o custo pequeno, da ordem de US$6 bilhões a US$7
bilhões, para que a Petrobras, fazendo cerca de cem poços na área
do pré-sal de Santa Catarina ao Espírito Santo, definisse o volume total
de petróleo. Essa informação é essencial para delinear um projeto estratégico
para o país do que fazer com o petróleo.
O
governo está promovendo o sucateamento das duas grandes riquezas do povo
brasileiro: o petróleo e, mais importante, a Petrobras, uma construção
histórico-social capaz de intervir sobre a natureza e dela arrancar um elemento
essencial para a sociedade, a energia.
P: O que
motiva o governo a fazer os leilões?
R: O
governo precisa de dólares para contrabalançar a situação macroeconômica. O
baixo índice de crescimento da economia brasileira, associado à potencial fuga
de dólares, fazem com que o Brasil precise do fluxo de dólares para manter o
equilíbrio das contas externas. Por isso, decidiu que vai antecipar o leilão de
Libra.
A
segunda motivação talvez seja ideológica, no sentido de subordinar os recursos
naturais à lógica do interesse privado.
Não sei
se há também interesses menores do ponto de vista da base de apoio econômico e
político ao governo, dinheiro para campanha e para enriquecimento de figuras
ligadas ao processo de poder, que está em xeque agora no Brasil depois que o
povo foi às ruas.
P: Qual
seria a melhor alternativa?
R: Havia
uma alternativa mais inteligente para resolver o problema macroeconômico:
contrata-se a Petrobras, que delimita o campo de Libra e produz. Ah, faltam US$
50 ou 60 bilhões para desenvolver o campo. Faz parceira internacional
negociada politicamente a partir do governo. Chama a China, eventualmente
a Índia e outros parceiros, e investe, produz e controla o ritmo de produção.
Em
contrapartida, a China recebe o petróleo a 80 ou 90% do preço internacional e
antecipa o dinheiro do investimento, coloca no Brasil o dinheiro
necessário para equilibrar as contas externas.
Libra
vai produzir cerca de dois milhões de barris por dia, 700 milhões por ano. Se
vender o petróleo a US$90 por barril e custar US$20 para produzir, sobram US$70
por barril.
São
US$50 bilhões por ano que estão em jogo, ao longo de 20 anos de produção, supondo
que as reservas sejam de 15 bilhões de barris, como esperado.
Com
US$50 bilhões por ano você mantém as contas externas com afluxo de US$10 ou 15
bilhões em moeda, os outros US$35 ou 40 bilhões usa para investir em
infraestrutura.
Criaria
a Metrobras que seria a dona e operaria os metrôs de todas as cidades com mais
de 500 mil habitantes no país. O Brasil poderia estabelecer uma parceria com a
China que estabeleceria fábricas de trens no Brasil. Essa espécie de escambo
não danificaria o equilíbrio da taxa de câmbio.
E nessa
escala, os recebíveis do próprio sistema de transporte garantiriam o
financiamento.
Eu estou
dando um exemplo. O mesmo podia acontecer para trens de alta velocidade
interestaduais, portos, vias navegáveis. Esse seria o modelo para o pré-sal em
geral, não só Libra.
Acima de
tudo o ritmo de produção tem que ser coordenado com a OPEP. Você não pode jogar
dois bilhões de barris de petróleo no mundo sem coordenação. Do contrário, há
um problema da renda petrolífera desaparecer. Está no horizonte uma ameaça
geopolítica contra a OPEP e a Rússia comandada pelos EUA, que quer difundir a
tecnologia do shale gas. Tem um petróleo e gás barato vindo daí.
P: Você
acha que no médio e longo prazo o preço do petróleo vai cair em função do shale
gas?
R: O
shale não tem força para destruir a hegemonia do petróleo nas próximas cinco
décadas, mesmo sabendo que a China tem recursos potenciais até superiores que
os dos EUA.
P: Mas
já há estudos dizendo que o shale pode tornar os EUA autossuficientes.
R: Sim, mas
é efêmero. Por quanto tempo vai ser autossuficiente? Até a semana que vem,
depois vai ter que voltar à mesa. Há uma ameaça no horizonte sobre o preço do
petróleo como construído historicamente a partir de 2005 pela OPEP, a partir da
hegemonia da OPEP no controle do recurso natural.
Em 1960,
84% do petróleo estava nas mãos das multinacionais, 14% nas mãos da URSS, e 2%
nas empresas nacionais. Em 2010 era o contrário: 92% nas mãos dos governos, de
empresas estatais ou híbridas. Com o controle político, eles conseguiram
impor o preço.
O shale
agora se apresenta como uma nova ameaça. O papel do Brasil nesse sentido é
absolutamente destrutivo da geopolítica dos países que querem extrair renda do
petróleo, que é o grupo em que o Brasil está entrando. O modelo que o governo
está colocando em Libra e o modelo aprovado no Congresso ou são absolutamente
ingênuos, ou destituídos de visão geopolítica estratégica, ou oportunistas,
para satisfazer interesses menores no governo.
P: Se
você partir do princípio de que a demanda dos EUA cairá, em função do shale,
derrubando o preço do barril, não seria melhor para o Brasil explorar logo o
pré-sal, e nesse sentido a entrada de empresas internacionais não é importante
para acelerar o financiamento?
R: Não
acho. O shale não tem dimensão para tomar o lugar do petróleo. Essa é uma
possibilidade muito pequena. Depende do modelo de coordenação da indústria
mundial do petróleo, via OPEP. Se a OPEP tiver capacidade de coordenação da
produção do petróleo líquido, o shalenão vai tomar o lugar. A Arábia Saudita
vive exportando dois ou três milhões de barris por dia.
Não
precisam exportar 10 milhões. A Rússia também. Eles têm fôlego para enfrentar a
guerra com o shale americano.
O
problema é que um cachorro louco igual ao que o governo brasileiro está
criando, leiloando um campo subordinado apenas à lógica microeconômica, sem
levar em conta tudo isso, é um tiro no pé porque vai destruir o preço do
petróleo no mundo.
Nem
Libra nem os outros podem produzir rapidamente, porque tem que ter coordenação
da produção para manter o preço do petróleo com renda elevada.
Os EUA
apostam na estratégia de desestabilizar o Oriente Médio, invadindo Síria,
Iraque, Líbia, desestabilizando o Irã e jogando shale no mundo. Eles estão
tentando extirpar a renda acumulada pelos produtores de petróleo e deslocar
esse excedente econômico para as esferas das empresas comandadas a partir da
lógica imperialista americana e europeia, as empresas de produção de
commodities, produtos, automóveis, informática e serviços.
O Brasil
não compreendeu isso e está operando com uma lógica microeconômica, do
contrato, do negócio, como se estivesse lidando com uma padaria. É como se a
Petrobras fosse a grande filha do povo e o governo tivesse tornado essa filha
anoréxica ao asfixiá-la com os preços dos derivados. A Petrobras está sem
caixa. E agora o governo quer pegar a terra que pertence ao povo e a filha do
povo, que é a Petrobras, e colocar numa espécie de casamento arranjado como
faziam as antigas oligarquias. E quem se beneficia disso é o eventual vencedor
do leilão. O governo trata Libra como se fosse uma padaria ou pizzaria.
P: As
regras dos leilões dizem que a Petrobras é operadora de todos os poços. Essas
regras são ruins para a Petrobras?
R: O
governo está proletarizando a Petrobras. Asfixiou seu fluxo de caixa com a
política de preços. Então a Petrobras não tem poder de barganha de entrar num
leilão e valorizar a sua capacitação tecnológica. Tem dois valores em disputa:
o petróleo e a capacitação da Petrobras.
E o
governo está vendendo as duas por um preço aviltado pela política recente.
Então a Petrobras ser operadora é quase ser escravizada em favor do capital
financeiro, em vez de usar esse potencial para gerar valor para
a sociedade brasileira.
Se ela
for prestadora de serviço, recebendo de US$ 15 a 25 por barril, ela vai ganhar
dinheiro, pagar bem seus quadros e melhorar a tecnologia. E o governo, vendendo
petróleo para a China a 90% do valor, sobrariam entre 65 e 75 dólares por
barril, que viram renda para o Tesouro investir em programas nacionais, fazer
uma Metrobras, uma Portobras, reforma agrária, reforma urbana, investir em
educação e saúde pública, e coordenar o fluxo de capitais para não tornar o
Brasil um país rentista, manter o país gerando valor pelo trabalho.
Jornal
dos economistas Via: Viomundo
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