Até que
ponto o Estado pode restringir liberdades individuais, em sociedades democráticas, para garantir a
segurança dos cidadãos? Esta antiga questão política voltou a ser debatida recentemente, quando o governo do Estado de São Pauloiniciou um novo programa de
internação involuntária e compulsória de viciados em crack. Por: José Renato Salatiel
Apesar da polêmica que o caso tem gerado, outros Estados
brasileiros, como a Bahia, e cidades, como o Rio de Janeiro,
também estudam a implantação de medidas semelhantes para enfrentar a “epidemia”
de crack no país.
O crack é uma droga mais potente do que a cocaína e de alto
poder viciante. Ela é composta de pasta de cocaína misturada a bicarbonato de
sódio ou amônia. Comercializada na forma de pequenas pedras que são fumadas em
cachimbos, a substância produz um efeito de euforia que dura poucos minutos.
Além dos efeitos físicos da dependência, há graves consequências sociais, como
dissolução de lares, prática de crimes, suicídios e violência.
A droga surgiu nos Estados Unidos nos anos 1980 e se popularizou no
Brasil nos anos 1990. Por ser mais barato do que a cocaína, dispensar o uso de seringas
e ter uma produção doméstica, o crack se espalhou rapidamente nas cidades e até
na zona rural. Ele é consumido não somente por pobres, mas jovens de classe
média e alta.
Uma pesquisa da Unifesp, divulgada em setembro do ano passado,
apontou o Brasil como o maior mercado mundial de crack. Estima-se que o país
tenha 1,2 milhão de dependentes, segundo dados do IBGE. Uma média de um terço
deles morre em cinco anos de vício.
O Sudeste concentra o maior número de usuários (46%), segundo o
levantamento da Unifesp. Em seguida veem as regiões Nordeste (27%), Norte
(10%), Centro-oeste (10%) e Sul (7%). O governo brasileiro trata o crack como
uma epidemia. O programa “Crack, é possível vencer” tem um investimento
previsto de R$ 4 bilhões da União, até 2014.
Cracolândia
Outra pesquisa, da Fundação Oswaldo Cruz em parceria com o
Governo Federal, apontou a existência de 29 cracolândias em 17 capitais
brasileiras, que se movem de acordo com as investidas da polícia e o confronto
entre traficantes. Nenhuma delas, contudo, possui as dimensões da existente no
centro de São Paulo.
Há um ano, a Polícia Militar ocupou o local, para dificultar o
acesso dos dependentes às drogas e obrigá-los a procurar ajuda especializada
para deixarem o vício. Mas a estratégia apenas dispersou os viciados pelas ruas
da cidade.
Por isso, o governador Geraldo Alckmin (PSDB), médico de formação, anunciou o
plano de internação forçada. O programa é amparado pela lei federal 10.216, de
2001, que estabeleceu um novo modelo de tratamento aos dependentes químicos no
país.
A legislação prevê, além da internação voluntária (com o
consentimento do usuário), dois tipos de internação à força: a involuntária,
que é feita a pedido de terceiros, e a compulsória, determinada pela Justiça.
Na primeira, um caso comum é quando o paciente tem um surto
psicótico e a família pede a internação em centros especializados, orientada
por um médico. No segundo caso, mais raro de acontecer, o paciente corre risco
de morte ou se torna uma ameaça para outras pessoas. Por isso, a internação é
determinada por um juiz.
Internações involuntárias e compulsórias, previstas em lei desde
2001, não são uma novidade no país. De acordo com o Ministério Público do
Estado de São Paulo, no ano passado foram feitas 5.335 internações
involuntárias de usuários de álcool e drogas no Estado. Em uma década, 2010
registrou o maior número de procedimentos desse tipo: 6.103.
A novidade é que a medida deixou de ser aplicada em casos
específicos para se tornar uma política pública, ou seja, uma diretriz de ação
governamental. Por isso tem recebido críticas.
Livre-arbítrio
Os defensores da prática sustentam que os usuários de crack não
têm mais controle sobre seus atos, e por isso colocam em risco a segurança de
sua vida e a de seus familiares. Como o vício tira deles o livre-arbítrio, ou
seja, a liberdade de fazer escolhas, a única chance de tratamento é mediante a
intervenção de familiares ou do Estado.
“Sempre faço uma pergunta nessas conversas: 'Se fosse sua filha
naquela situação, você deixaria lá para não interferir no livre-arbítrio dela?'
Eu, se tivesse uma filha grávida, jogada na sarjeta, nem que fosse com camisa
de força tiraria ela de lá”, afirma o médico Dráuzio Varella, um dos apoiadores
da proposta.
Há ainda o argumento de que os dependentes químicos apresentam
algum tipo de transtorno mental, mesmo que depressão, o que justificaria as
intervenções mais drásticas. Tal afirmação é baseada em pesquisas americanas e
contestada por outros especialistas.
Já os críticos não questionam as medidas legais de internação
forçada, apenas o seu uso como política pública. Para esses profissionais, o
programa tem um cunho “higienista”, isto é, seu objetivo não seria tratar
dependentes químicos, mas “limpar” o centro da cidade.
“Trata-se
de mais uma abordagem simplificadora do problema. Internações forçadas apenas
afastam o viciado da droga por um certo período. Não são mais que paliativos.
Além disso, enquanto não oferecem riscos, adultos devem ter sua liberdade
individual preservada e respeitada pelo Estado”, afirmou o jornal Folha de S. Paulo, em editorial.
Há ainda questões envolvendo direitos humanos na luta
antimanicomial, pois o isolamento de pacientes em manicômios vai de encontro a
abordagens comunitárias no tratamento de doentes mentais. A alternativa, para
acabar com a cracolândia, seria investir em programas sociais, pois a miséria
antecederia o vício.
Por: José Renato Salatiel,
Pedagogia e educação
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