“As políticas de segurança continuaram a ser
pautadas pela lógica da guerra contra ‘inimigos internos’. Desde então, este
modelo tem sido muito criticado e surgiram várias propostas para a sua reforma” Por: Matheus Boni Bittencourt
Os regimes políticos tendem a
reformar a organização policial e penal, procurando ajustar as instituições
preexistentes aos seus pressupostos, criando novas instituições ou extinguindo
as antigas. Essa reorganização do sistema penal é parte de qualquer transição
política.
Quando uma conspiração de
generais, empresários e agentes dos Estados Unidos depôs o presidente João
Goulart em 1o de abril de 1964, em pouco tempo procederam à reorganização das
instituições e agências de segurança. Pesquisadores, entre os quais os da
Comissão da Verdade, revelaram a existência de um sistema de espionagem e
repressão, organizado de forma hierárquica e tentacular.
O comando político-militar da
última ditadura (1964-85) aprofundou ao máximo a militarização do policiamento,
consagrando o modelo que separa a polícia judiciária e a polícia ostensiva de
feições castrenses. A Polícia Militar superou em número e visibilidade todos os
outros aparatos policiais ou militares. O efetivo policial-militar é maior que
o efetivo das três Forças Armadas e também é maior que o efetivo de todas as
outras polícias.
Durante o período ditatorial, a
Polícia Militar era comandada diretamente por oficiais do Exército. O
Constituição de 1988 preservou parcialmente este modelo, conservando as
polícias e corpos de bombeiros militares como força auxiliar e reserva do
Exército. O governador eleito nomeia o comandante-geral da PM e CBM, mas o
Exército, e, portanto, o presidente eleito que é o seu comandante supremo, pode
vetá-lo. A hierarquia, disciplina, treinamento e administração da segurança
pública, continuou, em larga medida, submetida aos padrões militares.
A atual Constituição Federal
também preserva, além da militarização (uma hiper-militarização, em se tratando
da PM), a fratura do ciclo de policiamento em agências ostensivas e agências
judiciárias, e a divisão das agências em carreiras superiores e subalternas
(delegados/agentes, oficiais/praças, etc). Corpos de Bombeiros, além de
militarizados e divididos em superiores/subalternos, são ainda parte da Polícia
Militar em muitos estados da federação.
O art. 144 da Constituição de
1988 se tornou uma verdadeira camisa-de-força, impedindo a reestruturação das
agências de segurança pública de acordo com as exigências de um regime
democrático. Instaurou o duplo comando estadual/federal das PMs e CBMs, manteve
a fratura do ciclo de policiamento em ostensivo/judiciário e a divisão de
carreiras em superiores/subalternos, estabeleceu um obscuro conceito de “ordem
pública” e impediu que os Estados pudessem discutir e reformar seus órgãos de
segurança pública, de acordo com as suas peculiaridades. E mais importante, deu
ao policiamento militarizado imposto por decreto-lei a força de norma
constitucional aprovada em processo constituinte.
As políticas de segurança
continuaram a ser pautadas pela lógica da guerra contra “inimigos internos”,
segundo a cartilha nacional-securitista. Desde então, este modelo tem sido
muito criticado e surgiram várias propostas para a sua reforma. Esses projetos
reformistas giraram em torno de algumas palavras de ordem, como a
desmilitarização e a unificação. Outros tentaram realizar reformas sem
modificação constitucional, através de programas de integração entre Polícia
Civil e Polícia Militar ou policiamento comunitário.
A maior parte dos planos e
programas de governo estaduais e federais, no entanto, vão no sentido da
instrumentalização política do modelo existente, não sendo incomum o reforço da
lógica militarista na política de segurança pelas autoridades eleitas. Uma das
consequências deste disso é a falsa polarização entre segurança e direitos
humanos, que favorece a demagogia autoritária de políticos conservadores, que,
uma vez no poder, se põem a incentivar uma conduta desrespeitosa, violenta e
discriminatória pela polícia, em nome do “combate à criminalidade” em defesa
dos “cidadãos de bens” e contra os novos “inimigos internos”, os “bandidos
(pobres)”.
A mais recente iniciativa
legislativa pela revisão constitucional da organização da segurança pública é a
PEC 51/2013. Há motivos para acreditar que esse é a proposta mais completa de
reforma da organização policial brasileira, capaz de contemplar demandas de
movimentos populares e de grande parte dos policiais.
O que traz a PEC 51/2013? No que
ela difere de propostas anteriores? Em primeiro lugar, a proposta difere das
anteriores por incluir várias propostas anteriores, trazendo ainda propostas
novas, e reformulando-as de modo consistente e mais amplo.
A PEC 51/2013 prevê a
desmilitarização das polícias, desvinculando-as do Exército Brasileiro, e
estabelecendo assim, de uma vez por todas, a salutar separação entre a função
policial e a função militar – para que assim os profissionais das respectivas
áreas possam cumprir a sua função sem ambivalências e invasões de competências
alheias.
Os governos estaduais poderão
organizar uma ou mais policiais estaduais desmilitarizadas, de ciclo completo e
carreira única. A possibilidade de várias polícias estaduais pode ser
estabelecida por territórios ou por tipos de crimes. Os governos estaduais ainda
poderão regulamentar as polícias municipais, que também devem ser
desmilitarizadas, de ciclo completo e carreira única.
A PEC 51/2013 também prevê a
criação de ouvidorias de polícia. Essas ouvidorias, independentes e com
participação da sociedade civil, são instrumentos de controle externo
complementares ao controle interno realizado pelas atuais corregedorias de
polícia. Os mecanismos de controle externo e interno contribuem para a
responsabilização do policial pelo seu trabalho.
A polícia brasileira tem sido
critica por protagonizar muitos episódios gravíssimos de violações dos direitos
básicos dos cidadãos. Os casos mais espetaculares são os massacres, quando a
ação policial provoca um elevado (e não raro subestimado) número de mortos e
feridos de uma só vez: Candelária, Carandiru, Eldorado de Carajás, Favela da
Maré, etc.
Menos visualmente espetaculares,
mas ainda assim impressionantes, são os incontáveis de casos de abuso de
autoridade, agressão, humilhação, extorsão, prisão ilegal, tortura e execuções
sumárias cometidos por policiais pulverizados no tempo e espaço. Um “massacre a
conta gotas” é realizado pela polícia brasileira, com destaque para a Polícia
Militar, com uma execução aqui, outra ali, uma durante o serviço fardado, outra
fora de serviço, que ao final de um ano resultam em milhares de mortes, e
sabe-se lá quantos ao longo de décadas de policiamento militarizado.
Conquanto se possa imaginar que
uma ínfima fração da violência policial seja justificada pela resistência
violenta de suspeitos à prisão, ameaçando gravemente a vida do policial ou de
terceiros, a esmagadora maioria dos casos denunciados sequer são investigados.
Os dados concretos indicam que as maiores vítimas são as camadas socialmente
excluídas, os jovens e os negros ou pardos. Entre as vítimas letais, destaca-se
que a maioria tinha sinais de execução sumária e não tinham antecedentes
criminais, contrariando o discurso oficial da morte em combate de criminosos
contumazes. As armas nas mãos podem ser “plantadas” após a morte, mas em muitos
casos sequer existe essa preocupação, tal a certeza de que não haverá
consequências.
As famílias e vizinhanças vítimas
da violência extrema reivindicam justiça e assistência, mas também a
desmilitarização da polícia. Apesar da alta vitimização por violência policial,
esta possui um forte apoio de amplos setores da sociedade civil, acuados por
uma gigantesco sentimento de insegurança. O imaginário do medo, explorado e
amplificado pelo sensacionalismo midiático, serve de combustível para essa imolação
massiva dos socialmente excluídos, que são tidos como suspeitos, até que se
prove o contrário.
Nos últimos
meses, os fluxos e refluxos de mobilização popular e a resposta
autoritária dos governantes levou a repressão militarizada a se exibir nas
principais vias públicas dos centros urbanos. As táticas de guerra, agressões
físicas e verbais, prisões ilegais, abuso de autoridade e tiros “para matar” e
bombas atirados contra pessoas desarmadas. A diferença foi o uso de balas de
borracha, gás de pimenta, tasers e gás lacrimogênio, ao invés
da munição letal que é usada nas favelas e periferias das regiões
metropolitanas.
A violência policial-militar se
exibiu em público, com milhares de testemunhas, muitas delas “armadas” com
câmeras de vídeo e fotografia e conexões com a internet. Fotos, vídeos e
testemunhos circularam pelas redes sociais, refutando a versão “oficial” da
polícia e da mídia. E mesmo assim, ainda houve os costumeiros massacres e
desaparecimentos forçados, ligados à política antidrogas nas periferias e
favelas.
É difícil determinar se foram as
balas de borracha na avenida ou as balas de chumbo nas favelas que provocaram
maior repercussão. Infelizmente, parecem ter sido as de borracha, o que não
impediu a solidariedade das vítimas dessa com a família do pedreiro Amarildo de
Sousa e dos dez mortos no Massacre da Maré. Sem descartar a repercussão que
possam ter tido as poucas revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade.
Talvez o mais importante agora
seja que a exigência de desmilitarização ganhou as ruas, em conjunto com várias
outras reivindicações difusas, que guardam em comum a recusa à governabilidade
conservadora imperante no Brasil. Se quisermos construir um Estado Democrático
de Direito, é preciso romper com a instituição do policiamento militarizado e
implementar uma nova organização policial.
Por: Matheus Boni
Bittencourt, Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Espírito Santo e servidor público estadual.Via: Congresso em Foco
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