Colunista
mostra como funcionava a Justiça criminal antigamente. A conclusão é que muita
coisa, como processos lentos e poderosos fugindo das grades e das algemas,
continua igual
Por: Luiz Carlos Gomes
Privilégios para
ricos ou nobres nunca foi uma questão nova no Brasil (veja o livro História
de conflitos no
Rio de Janeiro colonial, de Nireu Cavalcanti). Ele e O
Globo (23/11/13, p. 45) dizem o seguinte (as observações entre colchetes são
minhas):
1) que os poderosos sempre procuraram fugir das grades
[ninguém, na verdade, gosta de ficar preso; o que ocorre de diferente com os
poderosos é que eles usam todas as suas relações sociais e familiares de poder
para evitar a latrina da prisão];
2) que “processos lentos, tramitando por diversas instâncias,
em que os réus recorrem às suas relações pessoais com juízes e, mesmo quando
são condenados, gozam de privilégios vetados ao preso comum” é da tradição do
Brasil, desde a Colônia [ou seja: sempre foi assim e, considerando nossa
tradição histórica, será por um longo tempo];
3) os crimes de corrupção sempre foram julgados “com
dois pesos e duas medidas” [continua até hoje; réus com “status” sempre foram
tratados de forma diferente, porque são das relações sociais dos juízes e
demais operadores jurídicos];
4) presos com recursos pagavam taxas (fianças) para
ficar em liberdade [continua dessa forma. Pobre cumpre outras condições ou
acaba ficando preso, por não se tratar de “gente confiável”, por não oferecer
garantias de fidelidade ao direito, por ser presumido perigoso etc.];
5) os processos eram lentos [enquanto não mudarmos o
paradigma da Justiça, processualístico, não consensual, continuará dessa
forma];
6) as negociações
com os juízes e desembargadores corriam soltas [pela quantidade de juízes punidos
pelo CNJ nos últimos anos é de se imaginar que tudo continua como dantes];
7) os ricos sempre tiveram mais blindagens [claro,
porque influenciam tanto no processo de criminalização primária – feitura das
leis -, como no processo de criminalização secundária – funcionamento do Poder Jurídico];
8) mesmo nas hipóteses de delações (quem delatava na época
um crime contra a Igreja ou contra o Monarca ficava com metade dos bens do
criminoso) [hoje não existe esse tipo de premiação; premia-se coautor que
delata outros criminosos; essa delação, diante da ineficácia investigativa do
Estado, tende a virar praga];
9) os ricos usavam seus prestígios de nobreza e da
riqueza [sempre foi assim e sempre será];
10) o título máximo era da Ordem de Cristo (o rei era seu
grão-mestre; monarquia e Igreja eram inseparáveis) [não há como estudar a
política criminal e o direito criminal sem saber dos seus vínculos com a
economia, com a história e com a religião];
11) pessoas de sangue infecto (judeus, mouros, ciganos e
negros) só conseguiam chegar à nobreza em razão das guerras (foi o caso do
negro Henrique Dias, que participou da expulsão dos holandeses de Pernambuco,
em 1654) [hoje as pessoas de sangue infecto são o negro (preto ou pardo), o
índio e o branco pobre; eles são os torturáveis, exploráveis, prisionáveis e
mortáveis];
12) os nobres portugueses não aceitavam “a nobreza que
veio da terra” (mas o rei estava acima disso, para preservação dos seus
interesses) [desenvolveu-se na Europa a teoria da inferioridade racial e de
inteligência dos colonizados; os privilegiados não gostam de se igualar aos
inferiores];
13) os vereadores eram de famílias tradicionais [porque o
poder político nunca se desvinculou do poder econômico, nem do religioso];
14) os nobres não podiam ter suas casas confiscadas
(muitas foram preservadas em 1808, com a chegada do rei ao Brasil) [preservação
dos interesses da nobreza, tal como previstos na Revolução francesa, que deu
cartão vermelho ao poder religioso e às Monarquias Absolutas];
15) os nobres não podiam ser algemados ou expostos à
humilhação pública [a regra contra o abuso das algemas hoje está numa súmula
vinculante – número 11; a pena de humilhação pública é aplicada pela mídia
diariamente];
16) qualquer denúncia gerava a prisão (mas os ricos
pagavam fiança) [até hoje setores da jurisprudência aceitam medidas coercitivas
com base em denúncias anônimas];
17) a prisão domiciliar era restrita aos ricos e aos
doentes [certamente ricos, porque até hoje os pobres raramente são
beneficiários da prisão domiciliar];
18) as cadeias eram podres, sem vaso sanitário ou comida
[hoje elas são podres, disseminadoras de doenças, desumanas, crueis e
mortíferas, via violência ou aids];
19) a alimentação era responsabilidade da família [essa
responsabilidade hoje é do estado, que fornece marmitas incomíveis, com amplo
apoio popular; o sentimento de vingança não mudou];
20) os nobres subornavam os carcereiros e passavam a
noite na cidade [os subornos se agravaram para ter celular na cela, mais
relacionamentos íntimos etc.];
21) o processo andava mais rápido contra os pobres
(porque não podiam pagar advogados etc.) [isso não se modificou em
absolutamente nada];
22) pobres ficavam recolhidos às vezes mesmo depois de
terminada a pena [o mal continua; muitos presos continuam recolhidos mesmo
depois de cumprida a pena; a jurisprudência não vê nisso um motivo de indenização
alta];
23) o perfil do detento era predominantemente preto [hoje
é predominantemente preto e pardo; proporcionalmente tem muito mais preto nos
presídios que brancos];
24) alguns presos trabalhavam em obras públicas [essa
possibilidade continua, mas é pouco prática, por falta de vigilância];
25) trabalhavam acorrentados [esse é ainda um desejo dos
vingadores extremistas do século XXI];
26) condenados pobres por crimes graves eram mandados
para colônias africanas [hoje são exterminados, em grande quantidade];
27) para os ricos o processo era muito lento [continua o
problema, porque eles usam todos os recursos possíveis e ainda contam com a
irracionalidade do funcionamento da Justiça];
28) seus recursos para a Bahia (Tribunal da Relação)
demoravam muito tempo (somente o transporte do processo demorava 8 meses) [os
tribunais continuam demorando muito para julgar os recursos];
29) réu rico recorria para o Conselho Ultramarino, em
Lisboa (lá era julgado pela Casa da Suplicação) [hoje os ricos conseguem chegar
ao STJ e ao STF; pelo trabalho da defensoria pública alguns pobres também estão
chegando nessas instâncias com seus recursos];
30) os ricos e nobres sempre “mexeram seus pauzinhos”
junto aos juízes e à Corte real [o tráfico de influência é da nossa história;
são as relações cordiais de que falava Sérgio B. de Holanda];
31) o processo demorava até 10 anos [hoje se consegue
demorar mais que isso; veja o processo de Pimenta Neves assim como o mensalão
mineiro];
32) ricos, quando presos, ficavam em celas maiores e com
melhores condições [no “mercado” paralelo dos presídios se consegue alguma
coisa nesse sentido ainda hoje];
33) os pobres ficam em cubículos úmidos e inóspitos [isso
não se alterou, salvo que agora são muitos os presos, que precisam às vezes
dormir na vertical, amarrados nas grades];
34) os ricos podiam levar para dentro dos presídios
escravos que cuidavam de sua alimentação e da sua higiene pessoal [hoje eles
não levam escravos para dentro das celas, mas isso não significa que não
existam privilégios, no mercado paralelo do presídio].
Por:
Luiz Flávio Gomes, Via Congresso em Foco
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