Em mais de 500 anos de nossa República, convém breve reflexão
sobre um dos seus pressupostos, qual seja, de que todos vivemos
submetidos ao mesmo ordenamento jurídico.
Por: Leonardo Gomes Lopes
Ao acaso passou pela “vida cansada de minhas retinas”
(Drummond) um processo de suspensão e perda do poder familiar. Os pais
de uma menina de menos de um ano de idade eram tão pobres que não tinham
água encanada em casa, ou seja, eram representantes involuntários da
Idade Média. O Conselho Tutelar atendeu a família por uns quatro meses.
Nada foi oferecido além de conselhos, mas ficou registro sincero das
visitas, no estilo “estamos de mãos atadas”, depois que a Conselheira não conseguiu nem uma caixa de leite para a família.
Passados mais quatro meses em que nada foi feito, nem mesmo
conselhos, surge o referido processo. Antes da citação dos pais já havia
decisão do juiz, concluindo que os genitores eram inaptos e
encaminhando ao Serviço Social Forense para seleção dos pais adotivos,
com manifestação do Ministério Público no mesmo sentido (menos de dois
meses depois de protocolar a inicial). Quando os pais são citados e
juntam procuração constituindo advogado dativo eu pensei o que todo
mundo pensaria: “advogado para quê, se já está tudo decidido”.
A penúltima violência do Estado contra o casal foi que a apelação da
sentença que decretou a perda do poder familiar não foi recebida porque
intempestiva. O Código de Processo Civil dos pobres não deveria ter
prazos. A última violência deve persistir até hoje: a ausência de água
encanada em casa.
O que não se pode aceitar é que duas pessoas sejam impedidas de criar
o seu filho por um processo que deveria chamar-se certidão: serviu
apenas para certificar que os pais não prestavam. O casal não foi apenas
punido por sua própria pobreza. Foi punido pela incompetência do
Conselho Tutelar, que tem poder de requisição e nada requisitou; foi
punido pela inoperância da Assistência Social do Município, que não
soube assegurar direitos básicos. De nada valeu o art. 23 da Lei nº
8.069/90.
Parece tão evidente que um processo de destituição do poder familiar
merece um cuidado até maior do que um processo penal, ainda que a
sensibilidade não seja o forte do pensamento jurídico formado por
apostilas e por esse ensino “fast-food” que anda por aí.
Desde a sua primeira redação o Estatuto possui essa linha de reforço
do vínculo com a família, ou seja, não havendo um fato grave que por si
só justifique a destituição, os pais devem receber todo apoio
necessário. Assim, mudadas as condições de vida, retirados os entraves
do momento, vê-se como está sendo exercido o poder familiar.
Do contrário, se estará impedindo um direito sagrado porque os “pais
mereciam”, assim como, na ótica de Hitler, os judeus também mereciam a
câmara de gás.
Tanto num caso como noutro existe uma aparente racionalidade, com
ares de ciência e procedimentos burocráticos, a envolver a dor do outro
para que não a sintamos, para que o absurdo seja digerível, algo que a
filósofa Hannah Arendt tão bem definiu como “a banalidade do mal”.
Por: LEONARDO GOMES LOPES, ADVOGADO INSCRITO NA OAB/RJ SOB O N .º 148.788, SOCIO FUNDADOR DO ESCRITÓRIO “LOPES E ADVOGADOS ASSOCIADOS” ESPECIALISTA EM DIREITO DO CONSUMIDOR, PÓS-GRADUADO EM CIVIL E PROCESSO CIVIL PELA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, LEGAL LAYER MANAGER EM DIREITO EMPRESARIAL PELA FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. www.lopeseadvogados.com.br
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