“Ingressos
caros, gasto público com lucro privado, violações aos direitos humanos e
ataques à democracia. Esse é o grande legado da realização da Copa do Mundo no
Brasil. Revertê-lo em ganhos de mobilização política e transformação social é
possível”
Por: Edemilson Paraná
Evento
privado, gasto público, lucro privado. A “Copa das Copas” vai acontecer, já
aconteceu, já está acontecendo. Pelo menos para a Fifa. Uma projeção feita pela
BDO (empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas,
financeiras e mercadológicas) aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render
para a entidade, que supostamente não tem fins lucrativos, a maior arrecadação
de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões). O
valor é 36% superior em comparação ao montante obtido com o Mundial da África
do Sul (US$ 3,6 bilhões), em 2010, e 110% maior do que o arrecadado na Copa de
2006, na Alemanha, que rendeu US$ 2,3 bilhões. Os números foram confirmados
pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, em entrevista coletiva realizada
em junho de 2013.
Os
governos têm feito sua parte para ajudar… os cartolas. Com isenção de cerca R$
1 bilhão em impostos, o Mundial no Brasil já é um ótimo negócio para a
entidade. Ao todo, cerca de R$ 28 bilhões serão gastos em obras de
infraestrutura e construção e reforma de estádios para receber o torneio. Desse
montante, quase R$ 8 bilhões estão sendo gastos em estádios. Metade desse valor
é financiada por bancos federais. Apenas R$ 820 milhões gastos nos estádios
foram financiados com recursos privados (segundo valores da CGU). O restante
dos recursos foi aportado por governos locais, como é o caso de Brasília, onde
o valor do Mané Garrincha passou de R$ 1,2 bilhão.
Cerca de
um terço do valor total das obras (R$ 8,7 bilhões) está sendo financiado por
bancos federais – Caixa Econômica Federal, BNDES e bancos estaduais. Boa parte
desses empréstimos é tomada pelos próprios governos estaduais, sozinhos ou em
parcerias com o setor privado, embora alguns empréstimos também sejam
contraídos por entes privados (como os mais de R$ 400 milhões liberados pelo
BNDES para o Corinthians construir o Itaquerão). E antes que surja o papo de
que o dinheiro desses bancos é privado, lembremos que o BNDES, por exemplo, é
uma empresa pública. Recebe dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)
para emprestar em condições privilegiadas a empresários. O fundo é formado por
parte da receita de um tributo, a contribuição ao PIS/Pasep, cujo custo é
incorporado pelas empresas aos preços dos bens pagos pelos consumidores.
As obras
consumirão R$ 6,5 bilhões do orçamento federal e R$ 7,3 bilhões de governos
locais (estaduais e municipais). Dos R$ 28,1 bilhões totais, apenas R$ 5,6
bilhões serão recursos privados (que se concentram principalmente nos
aeroportos). Balela dizer que não há dinheiro público na jogada. O preço dos
ingressos todos nós já conhecemos, as obras de infraestrutura urbana,
propagandeados como o grande legado do evento, poucos viram até agora.
Em
resumo, a lógica é bastante simples. A Fifa faz uma festa privada e se você
quiser sediá-la precisa aceitar as condições da entidade. A verdade é que não
há nenhum comprometimento com o desenvolvimento econômico, esportivo ou humano
dos países que sediam grandes eventos esportivos.
Não por
acaso, a Suécia – que notoriamente tem problemas sociais menos agudos do que os
brasileiros – acaba de negar a oportunidade de uma candidatura para sediar as
Olimpíadas de 2022. A justificativa é assustadoramente simples: o país tem
outras prioridades como habitação, desenvolvimento e providência social.
Gastos
incalculáveis: o retrocesso nos direitos humanos
Não
bastasse a matemática contábil básica ignorada pelos defensores dos grandes
eventos, um conjunto de abusos e violações aos direitos humanos completa o
pacote de “gastos” sociais incalculáveis.
Um
mapeamento divulgado na Suíça pela Articulação Nacional dos Comitês Populares
da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas, no final de maio passado, calcula
que mais de 200 mil pessoas estão sendo despejadas arbitrariamente de suas
casas por causa de obras para os preparativos da Copa em todo o Brasil. Durante
os preparativos de megaeventos esportivos, estima-se que 15% dos moradores de
Seul foram expulsos de suas casas e, na África do Sul, 20 mil pessoas foram
despejadas.
Além das
milhares de famílias desalojadas, algumas outras pagaram com a vida o preço de
obras superfaturadas, feitas às pressas, com baixa remuneração, cargas de
trabalho extenuantes e pouca fiscalização. De junho de 2012 a dezembro de 2013,
o Brasil registrou sete mortes relacionadas à preparação do país para a Copa do
Mundo. Número mais de três vezes maior do que o registrado na África do Sul.
Contra a
revolta social produzida por tais abusos, muita repressão. Além de outros
milhões de reais gastos com aparato de repressão adicional (bombas de gás,
spray de pimenta, armas e balas de borracha, equipamentos de dispersão, entre
outros), uma tropa de choque especial com 10 mil homens, especialmente
recrutados para isso, será responsável por agir em caso de manifestações nas 12
cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. Além das tropas, robôs irão
monitorar por imagens a movimentação de pessoas nos entornos dos estádios, e a
vigilância a aplicativos de celulares e mídias sociais já está em andamento. O
Exército está a postos e também se prepara para a necessidade de ser convocado
a conter as manifestações. O (não) preparo dessas “tropas” para lidar com seus
próprios cidadãos exercendo seu livre direito de manifestação, como se fossem
inimigos da pátria, já é amplamente conhecido.
No apagar
das luzes de 2013, o Ministério da Defesa baixou uma portaria normativa que
“Dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem” pelas Forças Armadas. Entre outras
coisas o documento aponta a necessidade de conter “sabotagem nos locais de
grandes eventos” e aponta como “força oponente” os “movimentos ou organizações”
que causem dificuldades no objetivo de “manter ou restabelecer a ordem
pública”.
No
Congresso, tramitam mais de 13 propostas que “normatizam” manifestações. As
propostas, muitas flagrantemente inconstitucionais, tratam de criminalização,
aumento de penas, tipificação de terrorismo, entre outros ataques ao direito de
organização social. Além da Lei Geral da Copa, um abuso em si, que já revoga
vários direitos democráticos, tramita um projeto de lei no Senado que, entre
outras coisas, proíbe greves durante o período dos jogos e inclui o
“terrorismo” no rol de crimes com punições duras e penas altas para quem “provocar
terror ou pânico generalizado”.
Ganhos
inesperados: articulação e mobilização social
Ingressos
caros e avanço do processo de elitização do futebol no Brasil, gasto público
com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à democracia. Como
pano de fundo desse cenário, um país desigual, com saúde e educação
precarizadas e péssimos serviços de mobilidade urbana. O resultado não poderia
ser outro que não revolta social.
O combate
dos governos e seus aliados às manifestações é de ruborizar pela falta de
consistência política. O argumento de que “os protestos causarão prejuízos ao
Brasil” até faria algum sentido se os vultosos lucros com a realização do
evento não fossem parar no bolso de meia dúzia de gestores, empresários e
cartolas em detrimento dos altos preços cobrados de torcedores e contribuintes.
A ideia
de que o “movimento é partidário e, portanto, orquestrado para prejudicar a
reeleição da presidenta Dilma” desmonta-se diante de uma primeira visita a
qualquer um dos protestos: há tudo e todos, diferentes movimentos e colorações
ideológicas, trata-se de um espaço amplo, aberto, caótico e fragmentado.
Estrutura-se, pois, em anseios legítimos da população brasileira, que se
expressam da maneira possível diante do atual quadro de esvaziamento
representativo. Se prejudicam a imagem de governos, o problema está,
obviamente, nas medidas que estes resolveram adotar à revelia do que precisa e
pede o país neste momento, à revelia de nossas reais prioridades.
Chega a
ser irônico ver um governo dirigido por um partido que até ontem se apresentava
como de esquerda e nacionalista se mobilizar de modo tão uníssono – e por que
não dizer, desesperado – em defesa da submissão do Estado e da sociedade na
garantia dos lucros de uma instituição privada internacional que concorre na
Suíça ao prêmio Public Eye Awards como a pior companhia do mundo, honraria já
concedida às “benévolas” Vale do Rio Doce, Shell e ao Banco Goldman Sachs, um
dos responsáveis pelo estouro da crise financeira mundial em 2008.
Por fim,
o argumento de que os protestos são “autoritários” é risível diante do fato de
que em nenhuma etapa do processo – a eleição do Brasil como sede, a aprovação
da abusiva Lei Geral da Copa ou a remoção de centenas de milhares de famílias –
a população foi consultada. Tudo foi decidido, para variar, entre as cúpulas do
poder dominante.
As
preocupações dos governos e seus partidos dirigentes, no entanto, têm razão de
ser. A revolta crescente aos poucos se organiza politicamente e procura, sim,
os responsáveis pelos abusos. Já em 2013 a Ancop (Articulação Nacional dos
Comitês Populares da Copa) cumpriu um papel importante nas manifestações de
junho lançando o importante questionamento “Copa para quem?”. A articulação, um
dos catalisadores das manifestações à época com atos em todo o Brasil, reúne
comitês nas 12 cidades-sede da Copa, que por sua vez agregam movimentos
sociais, universidades e entidades de sociedade civil que lutam contra a
violação de direitos humanos. Poucos ganhos podem ser maiores para uma sociedade
do que os de conscientização e organização política em defesa de seus direitos.
Esse pode ser o nosso maior legado.
Desde o
ano passado, essa articulação vem se ampliando. O debate a respeito dos abusos
da realização da Copa do Mundo no Brasil, aos poucos, se desloca ao centro da
agenda política. No bradar de vozes opositoras, que já se autonomearam em
relação à ação inicial dos comitês, uma consigna se destaca mais do que outras,
para o pânico do andar de cima: “Não vai ter Copa”.
Não vai
ter Copa?
Tudo
somado, os gastos envolvidos, os interesses em jogo e o aparato de repressão
mobilizado, é difícil que não haja. Trata-se de ano eleitoral, de uma das Copas
mais lucrativas da história e da subjetividade de um país que passou – também
graças a insistente propaganda oficial ao longo de anos – a enxergar-se como o
país do futebol. Vai, sim, ter Copa. Só não para você.
Para quem
ela será, já sabemos. Sabemos também que o preço será alto para todos os lados:
governos, empresários, torcedores e manifestantes. Como o cenário não é
favorável para nenhuma mudança de rumos na organização do evento, engana-se
quem acha que a tensão social diminuirá até lá. Mas será que a palavra de ordem
“Não vai ter Copa” é a melhor nesse momento?
Particularmente,
creio que não. A consigna “Copa para quem?” denuncia de modo mais claro os
problemas que apontamos, articulando-o a outras dimensões de nossas
desigualdades estruturais, o que abre cenário para a politização sistêmica
desse processo, mesmo após a finalização do evento.
“Não vai
ter Copa”, em contrapartida, anima as manifestações para um objetivo que não
parece muito crível no momento, encaminhando as reivindicações para uma
derrota. Derrotas, sabemos, têm um impacto consideravelmente negativo em um
processo de lutas sociais, já que é de vitórias e conquistas, ainda que
pontuais, que se alimenta um ascenso político dessa natureza. Denunciar de modo
firme e claro os desmandos da realização do evento, desgastando e constrangendo
os responsáveis e privilegiados por tais abusos, já aponta uma importante
vitória parcial, que pode ser ampliada posteriormente em articulação com outras
denúncias, reconfigurando com isso a conjuntura da política brasileira.
Peçamos
hospitais e escolas padrão Fifa, moradias para os sem-teto, transparência nos
investimentos para a Copa, denunciemos a corrupção, a suspensão da liberdade de
manifestação durante a Copa. Dessa forma, temos mais possibilidades de obter
algumas vitórias; a maior delas, sem dúvida, será o fortalecimento de um amplo
e enraizado movimento de contestação social.
A maioria
do povo brasileiro não é contrária à realização da Copa do Mundo no país. É
contrária, sim, aos atropelos e usurpações que cercam a organização do evento.
Não fosse isso, tal maioria gostaria de uma Copa no “país do futebol”. De
alguma forma, então, a palavra de ordem “Não vai ter Copa” pode confundir as
coisas e fazer com que uma parcela da opinião pública que poderia apoiar o
movimento acabe se opondo a ele, ampliando, inclusive, a violência da
repressão. Quem surfa nessa ambiguidade? O governismo mal intencionado e os
defensores da realização dos grandes eventos tal qual estão sendo organizados.
De
qualquer forma, com a palavra de ordem que for, nosso lado é claro – e não é o
lado dos governos e da Fifa. Se a palavra de ordem “Não vai ter Copa” é a quem
vem das ruas, não devemos cerrar fileiras com o oportunismo político governista
a combatê-la. Podemos e devemos contribuir com a discussão de táticas
alternativas, mas o nosso dever é, antes de tudo, a unidade; é estar ao lado
daqueles que lutam contra o superfaturamento das obras, a corrupção aberta e o
uso de dinheiro público sem um mínimo de respeito às reais prioridades do país,
a submissão do governo federal a exigências absurdas da Fifa, as restrições à
liberdade de manifestação, às remoções, entre outros inaceitáveis ataques em
nome da alegria do futebol. Provemos ao mundo que somos sim, apaixonados por
futebol, mas negamos ser humilhados e oprimidos por essa paixão.
Por: Edemilson
Paraná é vice-presidente do Psol-DF e mestrando em Sociologia na UnB./Via:
Congresso em Foco
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