Para economista, país está sem rumo e falta um
projeto Nacional
Por Vanessa Jurgenfeld
Estudioso das questões do desenvolvimento econômico
há décadas, Wilson Cano, professor do Instituto de Economia da Unicamp, diz que
o Brasil está sem rumo e falta um projeto nacional de desenvolvimento.
Para o economista, um dos grandes problemas é a
perda do controle sobre os instrumentos de política macroeconômica depois das
reformas neoliberais dos anos 1980-1990 e as “amarras” com a Organização
Mundial do Comércio (OMC). Diz que sem o controle desses instrumentos, cedendo
às pressões do organismo internacional e do capital financeiro, é impossível
fazer uma política industrial efetiva, reanimar a indústria e o próprio
crescimento do país. A seguir, trechos da entrevista:
Valor: Como o sr. analisa o baixo crescimento da
economia brasileira nos últimos anos?
Wilson Cano: Nós tivemos um curso da nossa história
que foi truncado em 1970 com a crise da dívida. De lá para cá, as diferenças
são que, nos anos 80, o PIB cresceu a 1% ou menos, nos 90 cresceu a 2%, depois
a 2,5%, depois, entre 2003 e 2009, graças ao boom de commodities da China,
crescemos a 4,5%, 5%.
Agora, se você tirar a média histórica de 80 para
cá, é simplesmente deprimente. E parte da crise social não está pior porque a
taxa de crescimento demográfico baixou muito. A demografia nos livrou de
problemas bastante sérios que teríamos que enfrentar agora. Então, nossa crise
é estrutural e de 30 anos, vem dos anos 80, trazendo efeitos cumulativos.
Valor: Quais efeitos cumulativos?
Cano: Os erros da ditadura militar, que geraram a
crise do endividamento, e depois os erros crassos da adoção de uma política
neoliberal, que foram e são calamitosos.
Valor: A quais erros da política neoliberal o sr.
se refere?
Cano: Os erros advindos do neoliberalismo são as
reformas do Consenso de Washington — desregulamentação financeira, abertura
comercial, as reformas da relação capital-trabalho, reforma da previdência
social, privatização e encolhimento do aparelho do Estado. Essas coisas, que
motivaram palmas e elogios na mídia durante muito tempo a muitos empresários,
cobram um preço muito pesado para o futuro.
Nos livramos das estatais e nos livramos também da
possibilidade de atuar diretamente no comando da política econômica de vários
setores-chave. Se hoje estamos com problemas de logística, de comunicações, de
energia, em parte se deve a isso. Simplesmente se entregou a coisa ao setor
privado, achando que ele iria resolver os problemas. O setor privado se move
com uma perspectiva de uma taxa de lucro. Quando essa taxa estremece, ele
recua. Além disso, infraestrutura exige pesado financiamento de longo prazo,
portanto, imobilização de recursos por muito tempo.
É muito complexo deixar exclusivamente na mão do
setor privado. E foi muito pior, porque foi uma privatização de fato e de
direito. Aquilo que estava afeto a ministérios, controlar telecomunicações,
eletricidade, navios, virou todo um arremedo de controle público que são as
agências, como Anatel e Aneel. Aquilo é um conjunto de pessoas que vieram do
setor privado e que não são o Estado. É um ente híbrido e que, portanto, não
pode fazer uma administração pública desses setores. Então, o Estado foi
desmantelado.
Valor: E isso gerou impacto nas políticas de
desenvolvimento?
Cano: O Ministério do Planejamento hoje se converte
em um ministério de contabilidade pública. Não é um ministério que usa
orçamento público como instrumento de política de desenvolvimento. Você não tem
uma estratégia de planejamento. Então, crescemos pouco, porque nos amarramos
não só a essas reformas [neoliberais], mas também nos amarramos com a OMC.
Valor: Em que sentido “nos amarramos” com a OMC?
Cano: A abertura comercial, além de reduzir as
tarifas violentamente e eliminar um monte de entraves às importações,
escancarou o parque produtivo nacional à competição internacional. Essas falas
— ‘vamos elevar a produtividade’, ‘vamos introjetar ciência e tecnologia’ –, eu
ouço desde pequenininho, como se tecnologia fosse uma maria-mole que você
compra na venda da esquina e dá para criança. Isso passa por decisões de
empresários e por questões que não são fáceis de ser administradas.
Valor: Alguns economistas defendem que é preciso
melhorar a produtividade do capital e do trabalho para o país avançar mais…
Cano: O empresário introjeta tecnologia e ciência
quando tem expectativa de retorno. Se você está destruindo a sua indústria,
encolhendo cadeias produtivas, importando as coisas mais complexas e mais caras
e deixando a coisa mais fácil e simples para se fazer aqui, que ciência e
tecnologia vai embutir aqui? O pior é que, como você não tem rumo, não há um
projeto nacional, não sabe o que fazer também com o sistema educacional.
Aí inventa educação sem fronteiras e está uma
festa. Estão mandando aluno para tudo que é lado no mundo, como se o cara fosse
aprender algo muito inteligente no interior de Portugal, que é um submisso na
União Europeia. Estamos fazendo essas barbaridades.
Valor: Há economistas e empresários que dizem que
houve nos últimos anos aumento do Estado na economia e isso seria um dos
principais problemas…
Cano: É o contrário. O Estado se retirou da
economia. Era responsável por cerca de 50% da Formação Bruta de Capital Fixo do
país. Hoje, não responde nem por 20%. O investimento público federal foi ao
chão, e o dos Estados e municípios está rastejando. A presidente Dilma Rousseff
ainda elevou o investimento público federal, mas muito pouco. E ela não consegue
mudar isso.
Antes você tinha um orçamento público federal e
havia uma fatia que você podia dedicar ao investimento público, ao
financiamento público das estatais, ou o que quer que fosse. Agora entraram aí
juros, que consomem 40% da receita federal líquida, consomem cerca de 5% do
PIB. Isso era a participação do Estado na taxa de inversão. Então, a nossa taxa
de investimento não pode subir. E não há economia que cresça de forma
sustentada e elevada, se a sua taxa de investimento não sobe.
Valor: Qual a profundidade do problema da
competitividade da indústria brasileira?
Cano: O que fizeram Estados Unidos, Japão e Coreia
do Sul? Eles transferiram à China boa parte da sua capacidade de produção
industrial pelos salários mais baixos e condições da economia muito melhores.
Lá eles poderiam realmente ter uma competitividade avaliada em moeda e
inundaram o mundo com manufaturas da China, desde as simples até as de maior
complexidade.
É um mito pensar que poderíamos enfrentar China,
Japão, Coreia. Simplesmente porque, ao escancarar essas condições externas
[abertura, entrada na OMC], você acabou com um instrumento poderoso que o
Estado tinha, que era o de fazer controle do comércio exterior, de tentar
proteger determinados segmentos da produção nacional. Você não pode mais fazer
isso.
Valor: Por causa da OMC?
Cano: A OMC não deixa. Ela só te permite fazer
alguma restrição diante de uma crise grave de balanço de pagamentos e durante
certo tempo. Já estão exigindo do Brasil que acabe com a tarifa de 30% dos automóveis.
E tem um outro lado ainda mais cruel, que é a exacerbação do sistema financeiro
internacional.
Com a longa crise que vem dos anos 70,
arrefeceram-se os níveis de produção, o crescimento desacelerou no mundo, e o
capital, que antes tinha ovos produtivos e os colocava num ninho para gerar
mais produção, diminuiu esses ovos na produção e passou a colocá-los no ninho
financeiro. O capital foi deixando de ser basicamente produtivo para se
converter cada vez mais em capital financeiro. E o que sucedeu com os
empresários que receberam uma cacetada diante da abertura? Reduziram níveis de
produção e colocaram mais ovos na cesta financeira.
De lá para cá, uma fatia crescente da massa de
lucro das empresas não é fruto de produção, mas de aplicações no sistema
financeiro. Hoje, há empresários ganhando mais dinheiro no sistema financeiro
do que produzindo sapatos, salsichas ou lingotes de ferro. Quando se eleva a
Selic, chiam porque pagarão financiamento mais caro, mas riem de felicidade,
porque a aplicação financeira dará lucro maior do que se fizessem sapatos.
Valor: É uma contradição?
Cano: É uma contradição que se refletirá no sistema
de tomada de decisões nacional. O poder não vai ter mais uma frente
empresarial, como nos anos 1970, que dava sustentação ao avanço da
industrialização.
Valor: Outros países, como Estados Unidos, parecem
mais preocupados com uma reindustrialização, após perder indústrias para Ásia….
Cano: Eles perderam em termos. A
desindustrialização no Hemisfério Norte tem caráter distinto da
desindustrialização aqui. As duas diminuíram a proporção da indústria de
transformação no PIB, só que a do Brasil diminuiu de maneira precoce, porque
não fez crescer o que deveria crescer. Aquela diminuiu porque os serviços
cresceram muito, talvez tenham perdido um pouco de indústria. Mas as empresas
americanas estão na China e mandando lucro aos EUA.
Essa perda é bem relativa, diferente da nossa. Nós
perdemos mesmo, porque não temos estratégia nenhuma. E isso não é uma
debilidade do governo Dilma, Lula ou FHC. Mas é que, com adoção dessas
políticas macro, você não tem direito de formular nenhum programa nacional de
desenvolvimento.
Valor: Quais as principais consequências em não se
ter um projeto nacional de desenvolvimento?
Cano: Sem isso, não há rumo, porque as decisões
passam a ser tomadas porque o mercado financeiro gritou, porque a bolsa caiu, o
dólar subiu, enfim, você volta a viver as pressões diárias do tal do mercado
financeiro, que é quem no fundo faz as pressões na política econômica que nos restou,
que é elevar os juros e aumentar o superávit primário para poder pagar juros a
ele.
Valor: Alguns economistas dizem que há recuperação
da indústria brasileira nos dados do início deste ano. Como o sr. analisa isso?
Cano: A indústria não se recuperou coisa nenhuma.
Isso é produto de determinadas flutuações estatísticas. Houve erro de política
industrial, mas o crucial é o modelo de crescimento e de política econômica que
encarnamos em 1990 e não mudamos. E é por isso que a oposição é fajuta. Para
ser oposição, teria que poder criticar. Mas não pode, porque foi ela que
inaugurou esse modelo de política de juros altos, câmbio valorizado e superávit
primário.
Valor: O sr. acredita que o modelo macro vai seguir
sendo o atual?
Cano: Acho que sim, só que certas coisas têm
limites. Em economia, nada é eterno, nada é contínuo. Por exemplo, cuidado com
as contas do setor externo, porque [alguns dizem que] a vulnerabilidade do país
baixou consideravelmente, porque exportamos commodities e acumulamos US$ 370
bilhões de reservas. Mas eu digo: alto lá, cavalheiro.
Essas reservas são fruto de quê? Um país acumula
reservas por três razões: porque tem superávits comerciais, por receber
notáveis fluxos de investimentos externos produtivos e por ter recebido
capitais de empréstimo, ou mesmo especulativos, em quantidade apreciável, que o
ajudaram a fazer caixa. E esse [último] é o nosso caso. Nosso saldo comercial
já foi para o brejo. Estamos com déficit. E o déficit da conta de serviços e de
rendas supera nos últimos 15 anos largamente os superávits comerciais.
O país vem tapando buraco à custa de investimentos
diretos, que não cresceram como eram no passado, mas principalmente com
investimentos financeiros, como derivativos, dívida pública. Nossas reservas
não têm um lado real da economia. Estão calçadas em capital temporário, de alto
risco. Se vier realmente uma ventania forte, que é algo que está na agenda de
vários autores, essas reservas não sustentarão o equilíbrio do país, corremos o
risco de enfrentar crise severa.
Valor: Qual deveria ser o modelo para reanimar a
indústria?
Cano: Aí é que está o problema. O governo vestiu
uma camisa de força. Você tem seus músculos, seu cérebro, mas numa camisa de
força você não consegue se mover. Se você não pode mover os instrumentos do
juro, do câmbio, do crédito e das contas públicas, está amarrado. Esses
instrumentos são fortemente interdependentes nesse jogo político internacional
que entramos.
Você está com um avião e não consegue fazer voo
alto. Não adianta, como fazem alguns economistas, dizer que precisamos de
política industrial mais inteligente. É impossível. Você pode desenhar a
política industrial que quiser, mas política industrial precisa de juros, de
câmbio, de financiamento, de um grau de protecionismo à indústria nascente para
introjeção de alta tecnologia. E você cedeu todos esses instrumentos ao admitir
seu ingresso na OMC e fazer as reformas neoliberais.
A possibilidade de mudança é mínima. Pode fazer
política de desenvolvimento agrícola com recursos do Banco do Brasil. Faz uma
estradinha, dá uma ‘garibada’ no porto, mas fazer uma fábrica de chip, avançar
na petroquímica, na química fina, aí você não vai.
Valor: Por que esses setores especificamente seriam
importantes?
Cano: Fábrica de chip foi uma coisa estratégica para
quem quisesse enveredar no ramo da microeletrônica. Você não tem o comando, o
nervo da criação tecnológica na microeletrônica, se não fabrica chip. Aí tem
que comprá-lo da Coreia, da China… Mas posso dar outros exemplos. O déficit de
exportações na indústria química é severo, complexo.
Ficaram fazendo bobagens com a Petrobras, de
comprar refinaria em vários países, fazendo coisas do arco da velha, e não
cuidaram como deveriam da petroquímica e da Petrobras aqui dentro. Agora, ela
paga caro, toma grandes empréstimos lá fora e estamos com problema no
abastecimento de derivados de petróleo, uma política em parte equivocada. E
vamos afundar o setor de etanol, com essa política de preços de combustíveis.
Valor: O governo tentou enfrentar a pouca
competitividade industrial com subsídios, por exemplo.
Cano: São paliativos usados muito mais na hora que
a onça vai beber água. Na crise do ‘subprime’, que ia bater aqui, eles correram
e deram estímulos, mas que têm limites estreitos. A OMC não aceita isso em
caráter permanente.
Valor: O resultado do PIB de 2013 mostrou avanço da
taxa de investimento. Há uma mudança?
Cano: Mesmo nos anos melhores, o investimento não
atingiu nem 20% do PIB. Tivemos 25% nos anos 70. E há também uma diferença
qualitativa.
Economistas pecam porque olham a taxa de
investimento e não a sua estrutura. Nos anos 70, a parte alocada na indústria
de transformação era substancial. Hoje, não. E isso se reflete também na
estrutura do investimento direto externo, que vem muito mais para serviços, agrobusiness,
mineração e pouco à indústria.
Valor: Há economistas que defendem criação de
grandes grupos nacionais como forma de melhorar a competitividade. O que o sr.
acha?
Cano: Essa ideia foi fruto de um fato que ocorreu
no capitalismo. Quem mostrou realmente capacidade de engendrar gigantes foram
os americanos. Os alemães já tinham noção disso com as políticas de
cartelização no século XIX, tinham corporações fortes; aí os japoneses copiaram
isso, os coreanos também; e a China, que tinha as suas estatais. Mas eles
possuem muito mais do que apenas grandes empresas.
Têm moeda conversível internacionalmente, reservas,
controle sobre o câmbio, sobre os juros. Nós não temos. Que grande empresa
internacional você vai fornecer, se não tem moeda, se não há controle sobre a
política macroeconômica? É até apostar demais que aquele grupo privado
beneficiado por financiamento público é tão schumpeteriano que vai ter sucesso
internacional descomunal para virar grande grupo. Não creio nisso. Várias apostas
já foram feitas de maneira errada. Esse Eike [Batista]…Há anos que chamo a
atenção de meus alunos de que ele é o “Farquhar” brasileiro.
Valor: Farquhar?
Cano: Teve um financista americano hábil no início
do século XX, chamado Percival Farquhar, que montava castelos de cartas. Um dia
alguém puxou uma cartinha…
É evidente que isso é um fenômeno especulativo. Nós
embarcamos nessa canoa. E o BNDES não tem que ficar nisso.
Valor: Qual seria a saída?
Cano: Pode ser que se consiga diante de certas
circunstâncias internacionais montar uma saída de médio a longo prazo,
cuidadosa, gradual, para que se possa administrar os inevitáveis confrontos
externos e internos. Se vou mexer nos juros, desvalorizar o câmbio e até subir
um pouco a inflação, posso ter chiadeira nacional e o sistema financeiro sairá
de armas na rua.
Tenho que administrar isso, a indústria, o
agronegócio. Qualquer peça que se mexa neste tabuleiro afeta interesses
cristalizados. Se quiser aumentar proteção à indústria nacional, vai vir a OMC
e dizer não. Então, chegará um momento em que você vai ter que dizer não à OMC.
É uma briga feia e complicada. Quem sabe haveria com isso possibilidade de
realmente se montar uma integração latino-americana. Não que isso resolva a
magnitude dos problemas que temos. Mas seria um contraponto interessante.
Fonte: original do Valor econômico/Via: Viomundo
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