Capitalismo: a máquina de moer vidas pela visão de um professor

 A experiência dos trabalhadores que estudam à noite revela as marcas mais cruas do capitalismo  

                                  Metodologia SER EJA Cidadã: Matrículas da Educação de Jovens e Adultos  crescem 33% — Governo da Paraíba 

Por Valter Mattos da Costa*

As salas noturnas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) trazem corpos cansados pelo trabalho exaustivo e mentes saturadas pela luta cotidiana. Ali, o aprendizado não se dissocia da sobrevivência, mas se ancora nela.

A experiência dos trabalhadores que estudam à noite revela as marcas mais cruas do capitalismo. Não se trata apenas de desigualdade material, mas de uma captura simbólica que atravessa a vida, condicionando sonhos, linguagens e horizontes possíveis.

A história demonstra que todo sistema social cria sua própria cultura. O capitalismo, em sua fase contemporânea, ergueu uma cultura globalizada, marcada pelo consumo como identidade e pelo lucro como sentido último da vida.

Do ponto de vista sociológico, percebe-se a naturalização das hierarquias. A desigualdade aparece como destino inevitável, disfarçada por um discurso de meritocracia. Assim, o estudante trabalhador sente-se culpado pelo fracasso imposto estruturalmente.

A antropologia crítica evidencia como valores, afetos e até práticas de solidariedade foram reduzidos à lógica da mercadoria. O abraço, a festa, o tempo livre tornam-se bens raros, consumíveis, quando não transformados em mercadorias digitais.

Na filosofia, revela-se a contradição do “sujeito livre” que vive prisioneiro das condições de exploração. O discurso da liberdade individual oculta os grilhões da necessidade, do salário insuficiente e da alienação cotidiana.

A economia política mostra que a máquina de acumulação atual depende de extrair mais valor do trabalho, ao mesmo tempo em que esvazia direitos. Essa precarização se reflete diretamente no cansaço presente em minhas salas.

A geografia denuncia como territórios são atravessados por esse processo. Morar longe do centro, em áreas controladas por violência e abandono estatal, não é acaso, mas parte de uma cartografia da desigualdade planejada.

Na pedagogia, busco inspiração em Paulo Freire, que lembrava que ensinar exige coragem de denunciar a opressão. É preciso transformar a sala de aula em espaço de conscientização crítica, não apenas transmissão de conteúdos.

As contribuições de Pierre Bourdieu ajudam a entender como o “capital cultural” se converte em barreira. Muitos de meus alunos carregam saberes potentes, mas desvalorizados por uma escola que privilegia códigos elitizados.

Já Michel Foucault revela como os dispositivos de poder produzem corpos dóceis e controlados. O controle hoje não se limita à fábrica: expande-se para as redes digitais, onde a vigilância molda até desejos.

Nesse entrecruzar de autores, o diálogo com os estudantes ganha centralidade. A sala de aula noturna, mesmo atravessada por dores, torna-se espaço de resistência. É ali que germina a possibilidade de crítica radical.

Nos artigos que escrevo sobre educação, denuncio essa cultura capitalista que corrói a dignidade docente e estudantil. Porém, mais do que denúncia, proponho leitura atenta do presente, em suas contradições históricas e sociais.

Cada aula torna-se oportunidade de mostrar que o sofrimento individual não é culpa pessoal, mas resultado de uma engrenagem que captura vidas. Esse entendimento liberta, ainda que minimamente, e abre brechas para resistir.

A crítica não se limita a apontar os males. Ela precisa também imaginar alternativas. Ao reconhecer a centralidade do trabalho humano, é possível resgatar a esperança de que outro mundo pode ser construído coletivamente.

O desafio é grande. Mas é justamente no encontro entre história, sociologia, antropologia, filosofia, economia política, pedagogia e geografia que se revela a potência transformadora. A escola, mesmo frágil, ainda pode ser trincheira.

O capitalismo produz desigualdade, violência e alienação. Mas em cada olhar cansado que insiste em aprender há uma recusa silenciosa ao destino imposto. A cultura capitalista contemporânea não é eterna: pode e deve ser superada.

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 *Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História Social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.

 

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