Já se repetiu mais de uma vez a ideia segundo a qual a democracia é o
pior regime somente perdendo em ruindade para todos os demais que são
ainda piores que ela. Obviamente, todas as ditaduras e tiranias, não
importando de quais lavras, são muitíssimo piores do que as mais
imperfeitas democracias. Ao se ressaltar o caráter deficiente das
democracias, mesmo tendo em mente as melhores que possam existir, o que
se afirma é que somente existem democracias imperfeitas. Não há
democracias perfeitas e se miramos o ideal como meta inalcançável, isto
se dá porque as utopias, embora tanto necessárias quanto inalcançáveis,
são como as estrelas. Sem elas o nosso caminhar noturno seria, como
diria o poeta, enormemente triste. Em palavras mais sóbrias, o ideal tem
que ser mirado não porque ele seja atingível e sim para que sejam
providos os meios e compromissos para que venhamos a construir o melhor
mundo real possível. Até então, nada a nos causar espanto, pois sabemos
do caráter imperfeito da espécie humana, circunstância esta que nos
condena, no melhor dos casos, à necessidade de correção de nossos erros
em eterna recorrência.
Admitir a essencial imperfeição humana e com esta a essencial
imperfeição das instituições criadas pelo homem, obviamente, não deve
dar vazão à tese niveladora por baixo segundo a qual todas as opções
seriam igualmente más. Definitivamente, elas não são. Há opções
infinitamente piores que outras, ainda que a melhor das opções ainda
seja imperfeita. Dito isso, ressaltamos como muito negativas as opiniões
que desprezam ingênua e maldosamente as instituições como por exemplo, “com os deputados que temos, é melhor fechar o congresso”, “com os juízes que temos, é melhor acabar com a instituição da Justiça”, “com
os professores e profissionais da saúde que temos, é melhor fechar as
escolas, as universidades, os hospitais e postos de saúde” e “com a segurança que temos, é melhor dispensar as polícias”.
De fato, não precisaremos grande esforço para concluir acerca da
insensatez de pareceres do gênero. Ora, ainda que seriamente imperfeito,
um mau congresso é infinitamente melhor do que congresso nenhum, pois
congresso nenhum significa simplesmente ditadura e com esta o império do
unilateralismo, da repressão e da mais completa falta de controle por
parte do cidadão. Da mesma forma, ainda que a Justiça real constitua-se
em instituição ainda precária, a sua ausência seria muitíssimo mais
precária, pois sem ela instituir-se-ia a barbárie pela simples razão de
que nos faltaria a imprescindível instância para dirimir conflitos. Na
mesma linha, diríamos também que ainda que precários, viveríamos ainda
muitíssimo pior se não existissem escolas, universidades, hospitais e
polícias. Neste caso extremo, instituiríamos a mais completa barbárie,
na medida em que o analfabetismo, as doenças e o crime organizado
proliferariam e tudo o mais seria devastado. A democracia então deve ser
vista como processo. E como processo ela pode evoluir e se aperfeiçoar,
mas também, infelizmente, pode regredir.
A presente democracia em tempos globalizados se encontra ameaçada.
Não propriamente pela sua essencial imperfeição enquanto empreendimento
humano, mas principalmente pelo caráter exacerbado e assimétrico do
poder exercido por alguns atores sociais com relação aos demais atores
que também são protagonistas no processo. Falamos das grandes
corporações inclusive de redes de corporações que transcendem fronteiras
nacionais. Alex Carey nos advertiu que o século XX foi caracterizado
por três instâncias: (i) o desenvolvimento da democracia; (ii) o crescimento do poder das grandes corporações; e, (iii) o crescimento da propaganda das grandes corporações como meio de proteger o poder corporativo contra a democracia.
É necessário estarmos atentos. Para que venhamos a fazer uma crítica
refletida acerca dos graves conflitos de interesse que existem, e para
que possamos agir de maneira consequente, acreditamos que devemos
assumir de antemão uma posição de distanciamento tanto da recusa e
ojeriza sistemática da Ciência e da Tecnologia (C&T) quanto de
aceitação cega e apologética de qualquer que seja o desenvolvimento das
modernas C&T. O controle social organizado por parte de instituições
independentes tem um papel muito importante a desempenhar e tanto
melhor informado e munido do exercício da reflexão ele for, tanto melhor
para a democracia e para a educação dos cidadãos.
Por: Jenner Barretto Bastos Filho é professor na Universidade Federal de Alagoas e Doutor em Física Teórica pela ETH- Zurique, Suíça. É membro correspondente da Academia Paraense de Ciência e contemplado com a Medalha do Mérito Acadêmico UFAL 45 Anos. Tem interesse nos campos de Fundamentos da Física, Ensino de Ciências, História e Filosofia da Ciência e em questões ambientais e de desenvolvimento.
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