E o conseguiu ao escolher o caminho da virtude, do perdão e da
reconciliação. Perdoar não é esquecer. As chagas estão ai, muitas delas
ainda abertas. Perdoar é não permitir que a amargura e o espírito de
vingança tenham a última palavra e determinem o rumo da vida. Perdoar é
libertar as pessoas das amarras do passado, é virar a página e começar a
escrever outra a quatro mãos, de negros e de brancos. A reconciliação
só é possível e real quando há a admissão completa dos crimes por parte
de seus autores e o pleno conhecimento dos atos por parte das vítimas. A
pena dos criminosos é a condenação moral diante de toda a sociedade.
Uma solução dessas, seguramente originalíssima, pressupõe um conceio
alheio à nossa cultura individualista: o ubuntu que quer dizer: “eu só
posso ser eu através de você e com você”. Portanto, sem um laço
permanente que liga todos com todos, a sociedade estará, como na nossa,
sob risco de dilaceração e de conflitos sem fim.
Deverá figurar nos manuais escolares de todo mundo esta afirmação
humaníssima de Mandela:”Eu lutei contra a dominação dos brancos e lutei
contra a dominação dos negros. Eu cultivei a esperança do ideal de uma
sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivem juntas e
em harmonia e têm oportunidadades iguais. É um ideal pelo qual eu espero
viver e alcançar. Mas, se preciso for, é um ideal pelo qual estou
disposto a morrer”.
Por que a vida e a saga de Mandela funda uma esperança no futuro da
humanidade e de nossa civilização? Porque chegamos ao núcleo central de
uma conjunção de crises que pode ameaçar o nosso futuro como espécie
humana. Estamos em plena sexta grande extinção em massa. Cosmólogos
(Brian Swimm) e biólogos (Edward Wilson) nos advertem que, a correrem as
coisas como estão, chegaremos por volta do ano 2030 à culminância desse
processo devastador. Isso quer dizer que a crença persistente no mundo
inteiro, também no Brasil, de que o crescimento econômico material nos
deveria trazer desenvolvimento social, cultural e espiritual é uma
ilusão. Estamos vivendo tempos de barbárie e sem esperança.
Cito o o insuspeito Samuel P. Huntington, antigo assessor do
Pentágono e um analista perspicaz do processo de globalização no término
de seu O choque de civilizações: “A lei e a ordem são o primeiro
pré-requisito da civilização; em grande parte no mundo elas parecem
estar evaporando; numa base mundial, a civilização parece, em muitos
aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um
fenômeno sem precedentes, uma Idade das Trevas mundial, que se abate
sobre a Humanidade”(1997:409-410).
Acrescento a opinião do conhecido filósofo e cientista político
Norberto Bobbio que como Mandela acreditava nos direitos humanos e na
democracia como valores para equacionar o problema da violência entre os
Estados e para uma convivência pacífica. Em sua última entrevista
declarou:”não saberia dizer como será o Terceiro Milênio. Minhas
certezas caem e somente um enorme ponto de interrogação agita a minha
cabeça: será o milênio da guerra de extermínio ou o da concórdia entre
os seres humanos? Não tenho condições de responder a esta indagação”.
Face a estes cenários sombrios Mandela responderia seguramente,
fundado em sua experiência política: sim, é possível que o ser humano se
reconcilie consigo mesmo, que sobreponha sua dimesão de sapiens à
aquela de demens e inaugure uma nova forma de estar juntos na mesma
Casa.
Talvez valham as palavras de seu grande amigo, o arcebispo Desmond
Tutu que coordenou o processo de Verdade e Reconciliação:“Tendo encarado
a besta do passado olho no olho, tendo pedido e recebido perdão e tendo
feito correções, viremos agora a página — não para esquecer esse
passado, mas para não deixar que nos aprisione para sempre. Avancemos em
direção a um futuro glorioso de uma nova sociedade em que as pessoas
valham não em razão de irrelevâncias biológicas ou de outros estranhos
atributos, mas porque são pessoas de valor infinito, criadas à imagem de
Deus”.
Essa lição de esperança nos deixa Mandela: nós ainda viveremos se sem discriminações pusermos em prática de fato o Ubuntu.
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