No Brasil, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer. Esse número representa um aumento de 73,68% quando comparado ao índice do ano passado, acréscimo de 14 milhões de pessoas que passam a figurar no mapa da fome. Na Região Nordeste, 21% das famílias têm a fome como parte do dia a dia e 68% da população é atingida pela insegurança alimentar, ambos acima das médias nacionais. A situação atual é equivalente ao patamar da década de 1990. Nilson de Paula, coordenador executivo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), aponta que o combate à fome deixou de ser uma prioridade política.
Os dados foram divulgados nesta quarta-feira (8), no 2º Inquérito
Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19
no Brasil, conduzido pela Rede Penssan e execução em campo do Instituto
Vox Populi, Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Oxfam, entre outras
instituições. A pesquisa também mostrou que 6 a cada 10 brasileiros
convivem com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou
grave), correspondendo a um total de 125,2 milhões de pessoas, e só 4
entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação.
Quais são as características atuais da fome no país?
Como
foi exposto no relatório que acabou de ser publicado, temos falado com
uma certa ênfase que a fome é um fenômeno multidimensional com várias
manifestações. É possível detectar isso através da ideia de que é um
processo, não algo que acontece de repente e que se manifesta de forma
absoluta. Vemos que é um movimento ao longo do tempo e, particularmente,
eu destacaria que a partir de 2015 e 2016, essa tendência se agrava.
Outro ponto é ver essa gradação da fome através da ideia de insegurança
alimentar. Quando nós falamos da sua forma leve, por exemplo, as
pessoas não necessariamente estão passando fome, mas já há uma uma
espécie de precarização da alimentação das famílias, ou seja, uma ameaça
da fome e preocupação com relação à falta de alimentos e de um
empobrecimento de sua qualidade. No caso da insegurança moderada, as
pessoas já excluíram da sua dieta alimentar alguns alimentos que estão
caros ou deixaram de fazer alguma refeição no dia porque o dinheiro
acabou. Depois, chegamos em um nível mais trágico que é o estado de
fome, onde as pessoas deixam de se alimentar com a regularidade que
seria o recomendável e o dinheiro não permite comprar alimento de acordo
com as necessidades. De fato, entrando em um estado nutricional
comprometedor que tem consequências mais sérias do ponto de vista da
saúde e da própria evolução das pessoas, em particular das crianças.
Quais fatores explicam esse aumento nos registros da fome?
Temos
várias camadas e explicações para isso. Definitivamente, não dá para
atribuir à pandemia. Esse problema da insegurança alimentar já vem
ocorrendo em função de um certo distanciamento do Estado brasileiro, em
particular, a partir de 2016, que optou por precarizar e dar uma
importância menor a políticas públicas de proteção social, tanto no
campo da renda através do emprego e salário, quanto das políticas
voltadas para garantia de suprimento alimentar. Junto com isso, nós
temos um acúmulo de derivações ou consequências que são o aumento do
desemprego e a precarização das relações de trabalho com a
informalidade. A renda e o poder de compra de milhões de famílias
reduziu drasticamente ao longo desse período, o que pode ser traduzido
no aumento das desigualdades. Não é que o país entrou numa crise
econômica incontornável, o que aconteceu foi que ao mesmo tempo em que
um contingente expressivo da população passou a viver com uma renda cada
vez menor e insuficiente, do outro lado temos um aumento da riqueza com
novos milionários surgindo. Isso é uma expressão do quadro da sociedade
brasileira que tem a fome como uma das suas manifestações. A fome é
consequência do aumento da pobreza, mas ela não significa o país não
produza alimentos ou que o país não tenha riqueza.
Por que o Nordeste tem índices tão altos de pessoas com fome? Como avalia a situação do Rio Grande do Norte?
As
informações sobre estados foram levantadas, mas estão sendo
processadas. Ainda não temos o diagnóstico e sistematização desses dados
para comentar a respeito. O que nós temos é um conjunto de informações
sobre as macrorregiões. Voltando a falar dessa ideia de que a fome tem
várias dimensões, uma delas é a regional. Observamos e confirmamos algo
que foi revelado na pesquisa de 2020, onde o Norte e o Nordeste aparecem
com níveis mais elevados de insegurança alimentar. Por exemplo,
falando apenas de fome, enquanto no Nordeste temos 21% da população
nessa condição, esse número é de 10%, na região Sul e 13,7% no Sudeste. O
Brasil não é uniforme do ponto de vista espacial, as pessoas vivem em
condições muito diferentes. Essa é uma realidade no campo da alimentação
e um primeiro aspecto a ser observado. Outro ponto diz respeito a
diferença, por exemplo, entre espaço rural e urbano. Verificamos que no
meio rural a insegurança alimentar é muito maior e, no Nordeste, essa
diferença é mais acentuada do que nas outras regiões. Quando nós olhamos
para a diferença entre raça e cor, as pessoas autodeclaradas pretas e
pardas têm um nível de insegurança alimentar maior do que as brancas.
Esse é um outro traço da fome. Essas pessoas estão sujeitas a uma maior
vulnerabilidade social e isso é um retrato do Brasil. Sempre lembrando
que quando nós falamos de alimento, estamos falando de uma condição
essencial para viver.
Esse é o pior período pelo qual a população brasileira vive desde quando? Por que retrocedemos tanto?
A
fome sempre existiu no Brasil, que é um país desigual desde sua origem.
Na crise econômica dos anos 90, havia muita gente passando fome. A
questão era como identificar a manifestação desse problema. Isso passou a
ser feito de uma forma mais sistemática a partir de 2004. Na verdade,
quando destaco 2016 é pelo fato de que a partir do governo Temer, e o
atual mais claramente, fizeram uma escolha de política social e
econômica no sentido de desmantelar instrumentos de política pública que
existiram antes, por exemplo quando olhamos para a desidratação que
houve no programa de aquisição de alimentos ou nas políticas voltadas
para agricultura familiar, alimentação escolar e mesmo as políticas de
transferência de renda isso representou uma espécie de escolha do
caminho para a economia brasileira. A partir daquele momento, o Estado
reduz sua atuação como se dando mais mais fôlego o mercado e decide-se
que economia vai andar segundo essa orientação. Temos um deslocamento
da forma como o Estado brasileiro se relaciona com as necessidades da
população, só que ao mesmo tempo a população também passou a viver em
condições mais precárias. A política do teto de gastos atingiu
diretamente naquilo que a população mais vulnerável precisa. Nesse
momento, há uma inversão de tendência porque estavam em execução no
Brasil políticas voltadas diretamente para isso a partir dos anos 2000.
Tanto que em 2013, 2014 o nível de insegurança alimentar grave era
baixíssimo em 4%. Hoje, temos uma média nacional de 15%.
O combate à fome deixou de ser uma prioridade política?
Eu
diria que sim. A própria reação que nós temos da divulgação desses
dados pelo governo federal é um sintoma claro disso. Ao tomar
conhecimento da gravidade da situação, a primeira coisa que o governo
deveria fazer é pensar em medidas para resolver o problema, mas da mesma
forma que aconteceu na pandemia, a primeira reação do governo tem sido
de negar e fechar os olhos para isso. É a ideia de que não reconheço a
informação e eu não quero saber, portanto vou criar um outro discurso
para lidar com isso.
Quais as medidas para conter o avanço da insegurança alimentar a curto prazo?
Eu
ousaria dizer que o caminho é fazer transferência de renda e
proporcionar poder de compras para as famílias. É claro que isso não
exclui as iniciativas que vem da própria sociedade civil através de
solidariedade e doações. Isso ajuda e ameniza o problema, mas uma
sociedade não pode ter uma população vivendo permanentemente a base de
doações, é um contexto emergencial. A saída é caminhar na direção de
reduzir desigualdades, recapacitando o Estado para promover políticas
que levem a uma redistribuição de renda. As pessoas precisam ter renda
para viver dignamente e não se trata apenas de poder de compra para
alimentação, mas viver em condições de moradias adequadas, ter acesso à
água, saneamento, à educação e à saúde. Esse é o caminho. Para isso, é
preciso uma transformação do modelo econômico que promova geração de
empregos de qualidade. Os direitos sociais precisam ser recolocados na
agenda e não tratar disso como se fosse um privilégio.
O que o Estado deve fazer para melhorar os programas de transferência?
Temos
aí uma espécie de encontro entre aquilo que é a essência de uma
política e o interesse político. Por que estou falando isso? Ao se fazer
a transformação apenas das aparências, como no caso do Bolsa Família
para o Auxílio Brasil, mostram-se as prioridades. Segundo dados do
governo, são 17 milhões de pessoas sendo atendidas pelo Auxílio Brasil
com uma renda de R$ 400. O que é esse montante comparado às outras
despesas que o Estado tem, por exemplo, quando a gente pensa em um
orçamento do orçamento secreto. A questão é a importância que se dá ao
problema. É preciso aumentar esse valor, é preciso fazer transferência
de renda e é preciso flexibilizar essa obsessão pelo equilíbrio fiscal,
que acaba criando amarras que resultam em uma sociedade paralisada e que
se surpreende com 33 milhões de pessoas passando fome.
TN
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