Crise climática, seca de rios como o Solimões, a piora da qualidade do ar em Manaus, o conflito entre Israel e Hamas, a suposta ideologia por trás das questões do Enem e até mesmo a preferência por Bis ou KitKat: no cenário de polarização em que vivemos, praticamente qualquer assunto pode despertar conflitos e ascender paixões extremadas, nas quais, em vez de ouvir o outro e entender por que ele ou ela pensa como pensa, o desejo que se manifesta é o de calar, humilhar e constranger o porta-voz de visões diferentes das nossas.
E isso é muito grave: perdemos como sociedade engajada na promoção do bem-comum e nos apequenamos como humanidade.
Embora defendida aos borbotões por quem a idealiza, a atual conjuntura depõe contra a própria tradição ocidental (tão proclamada por agentes da extrema-direita que, por trás de alguns belos rótulos como humanismo ou ética judaico-cristã, pregam preconceitos totalmente avessos a essas visões de mundo).
O teórico da linguagem, Mikhail Bakhtin, ao analisar os diálogos socráticos, comentou como neles a verdade não está em uma pessoa, mas é um processo construído entre pessoas.
Na era da pós-verdade e das Fake News, o estudo de Bakhtin pode ser uma via de salvação e conservação das boas qualidades que conseguimos construir ao longo da história e da cultura, principalmente quando acreditamos no papel e na potência do diálogo como motor da construção e da partilha de conhecimento.
Infelizmente, no cotidiano, o que percebemos é o oposto da atitude de chegar à compreensão e à resolução de conflitos por meio da cooperação e do diálogo com os demais.
Em uma cultura na qual o importante não é o enunciado, mas a atitude de poder enunciar, somos surdos às vozes dissonantes da nossa, rotulamos e classificamos o outro a partir de certas posições fixas, assim como somos rotulados e classificados por ele, que é capaz de nos acusar de subverter a realidade por meio da nossa ideologia, embora não consiga ver a carga ideológica das suas próprias ações e pensamentos.
No lugar do encontro com o diferente, com a alteridade a partir da qual nos constituímos como sujeitos, optamos por construir nossa identidade encontrando a nós mesmos, a pessoas com ideias e valores similares aos nossos.
Ao contrário de quem acreditava que a internet seria uma nova ágora democrática, na qual diferentes interpretações de mundo se apresentariam a fim de, por meio do embate de ideias, se criar consensos e entendimentos, o que vemos é o fenômeno do gueto, da fanatização, da guerrilha ideológica, da vontade de poder silenciar e destruir o divergente.
E, é claro, a sala de aula como espaço promotor da divulgação do conhecimento, da formação crítica de indivíduos e da ampliação da visão de mundo para que ela comporte a alteridade, é o espaço de disputa política por excelência. As discussões e polarizações que tencionam as redes atravessam escola, professores e estudantes.
Em 2022, um professor do Colégio Marista Sant’Ana foi demitido da instituição após fazer uma postagem em sua conta pessoal do Twitter criticando o desperdício de água por latifundiários no município de Uruguaiana, que é um dos principais produtores de soja e arroz da região Oeste do Rio Grande do Sul.
No mesmo ano, em Pelotas, também foi demitido um professor de biologia da escola Mario Quintana, que usou dados científicos para demonstrar em sala de aula a relação entre a produção de carne e arroz e o efeito estufa.
E, recentemente, vídeo de um professor de história do Colégio Anchieta, que trabalhava o conteúdo do livro didático (Conflitos no Oriente Médio) e buscava mostrar aos estudantes o quanto as opiniões que declaravam também eram manifestações ideológicas, resultou no afastamento do educador, para “preservá-lo”, como declarou a direção da escola.
Para quem assistiu ao vídeo na íntegra, não há na conduta do professor nenhuma promoção da causa Palestina nem apologia aos atos terroristas do Hamas.
Mas, em uma cultura na qual preferimos nos preservar de opiniões que não se enquadram nas nossas obsessões ideológicas, o simples apelo ao bom-senso, à moderação e à discussão da multiplicidade de pontos de vista envolvidos em um conflito, são razões para querermos o linchamento daquele ou daquela que nos obrigaram a pensar fora da nossa zona de conforto.
Além de ilegal, a ação de gravação e edição da aula por parte de uma aluna, bem como o uso desse material por parte de pais e políticos de Extrema Direita que nada têm a ver com a realidade escolar atenta não só contra a liberdade de cátedra do professor, mas também contra a educação como processo civilizatório a partir do qual a realidade é analisada de modo crítico, não como algo que surgiu espontaneamente, porém como um processo histórico em que diferentes agentes e agendas estão envolvidos.
O docente em questão estava cumprindo seu papel, observando diferentes lados do conflito e levando os estudantes a refletirem sobre um mundo complexo, para o qual não existem respostas simples. Esse episódio de violência simbólica, censura e pressão sobre o professor agrava ainda mais a situação em que vivem os educadores.
Hoje todos os espaços são disputados politicamente. Há diversos grupos interessados em um ensino que não contrarie sua visão monológica de mundo e preserve seus rebentos de conhecerem valores e ideias diferentes daquelas da família de origem.
Como estratégia de pais conservadores e reacionários está o de doutrinar e estimular seus filhos a usarem o celular para gravarem e exporem ao linchamento virtual todo aquele que discordar dos seus valores.
O professor pode acreditar que está cumprindo seu papel de problematizar a matéria, enquanto alguém mal intencionado grava e edita sua aula, de modo a tornar esse educador objeto de uso político daqueles que não aceitam uma sociedade plural.
Frequentemente, esse professor ou professora, que não fez nada além de cumprir sua missão, é demitido pela escola, que, acuada, prefere apaziguar os ânimos dos clientes a enfrentar posições que agridem os próprios valores da instituição.
Dentro da própria tradição ocidental, a condenação à morte de Sócrates não difere muito das acusações e calúnias vilipendiadas aos professores.
Se fôssemos mais socráticos, saberíamos que o processo de aprendizagem só se instala no momento em que somos desafiados a rever nossas posições.
Para o mestre de Platão, é somente quando estamos em aporia, quando nossos argumentos não chegam a nenhum lugar e precisam ser revistos ou precisamos estabelecer novas estratégias para dar conta dos fenômenos da realidade, é que começamos propriamente a raciocinar e a criar conhecimento. Contudo, atualmente, a tradição socrática encontra a barreira de pais e dos seus dispositivos de controle.
Michel Foucault expôs os riscos de uma sociedade onde somos sempre vigiados. Por meio do conceito de panóptico (estrutura que possibilita a vigia de todas as células em uma prisão), o pensador francês reflete sobre como nossa sociedade de controle incorporou esse dispositivo.
Acostumados a sermos vistos pelo panóptico, nos policiamos a todo momento, acionamos o censor interno, constrangemos nossas opiniões de maneira a não gerar ruídos. O celular é o panóptico atual.
A qualquer hora podemos ser gravados e expostos. Tal controle sobre a atividade docente produz insegurança, levando à internalização do panóptico. Gravados ou não, a tendência é que silenciemos sobre determinados assuntos devido ao medo das consequências.
Colegas professores de história me relatam que muitas vezes evitam falar da tortura perpetrada pelo Estado durante a Ditadura Civil-Militar Brasileira.
Às vezes, colocam o tópico no quadro, mas logo passam a outro assunto, com receio de serem gravados e se tornarem mártires daqueles fervorosos extremistas que bradam pela liberdade de expressão de seus preconceitos, mas cancelam aqueles que discordam deles.
A Lei Nº 12.884, assinada pela governadora Yeda Crusius, proíbe o uso de celulares em sala de aula. Países como Dinamarca, Holanda e Finlândia proíbem o uso desses aparelhos em espaços escolares, por serem contraprodutivos ao processo de ensino e aprendizagem.
Devido à tensão crescente na qual vivemos, a sala de aula torna-se uma arapuca, uma armadilha para capturar professores desprevenidos e fazerem deles casos de punições exemplares.
Nesse cenário, quem vai querer ser professor? E o que será dos jovens, que terão seu acesso ao saber negado, porque internalizamos nosso censor e fugimos dos atritos? E quem tem interesse em uma educação que não desafie nem amplie nossa visão de mundo?
Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS e do Colégio Gabarito e diretor do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS)
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