A gestão de Lula 3 começou com promessas de avanço nos índices de alfabetização das crianças brasileiras, mas, neste primeiro ano, os resultados ficaram aquém do esperado. O presidente escolheu, inclusive, gestores do Ceará – estado referência em alfabetização – para ocupar os cargos mais altos do ministério de Educação. Com eles, o MEC chegou a lançar o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, mas que acabou sendo considerado uma decepção para especialistas ao apresentar "mais do mesmo" em diretrizes genéricas. A pasta também teve dificuldades para executar o orçamento na área. Enquanto isso, a atuação do ministro da pasta, Camilo Santana, ganhava destaque em outros assuntos como as mudanças do Novo Ensino Médio e a briga com cursos de graduação 100% EaD.
O Compromisso Nacional Criança Alfabetizada foi assinado em junho e quer que 100% das crianças brasileiras saibam ler e escrever até o fim do 2º ano do ensino fundamental, entre seis e sete anos de idade. Essa é considerada por especialistas como uma das habilidades de maior impacto durante todo o trajeto escolar do aluno. Com a leitura e a escrita bem estabelecidas, os estudantes aumentam a capacidade de aprender outros conteúdos que lhes serão apresentados.
O problema da iniciativa do MEC, no entanto, é a falta da indicação de medidas concretas, baseadas em evidências científicas. Ou seja, na prática, os documentos são inócuos.
“Os parâmetros que estão nos documentos são genéricos. Um ‘pedagogês’ que não é mentira, mas que também não vai ajudar o município”, considerou Fábio Gomes, que por quatro anos ocupou os cargos de diretor e secretário de alfabetização do governo de Bolsonaro.
Em outro momento já tínhamos falado sobre a falta de parâmetros do Compromisso para medir efetivamente a capacidade de leitura dos alunos. Gomes vai na mesma linha ao analisar o texto que dá as diretrizes para as formações de docentes. “A minha preocupação é que com esse mesmo documento você pode ter formações totalmente diferentes uma da outra e que não necessariamente vão atingir o objetivo. Porque faltou identificar quais pontos exatamente devem ser trabalhados”, afirma.
Mesmo com a bandeira da alfabetização sendo levantada pelo governo Lula como a principal da gestão, os problemas orçamentários dificultaram o andamento das ações. Até novembro de 2023, o MEC não chegou a executar um centavo sequer dos R$ 801 milhões previstos para alfabetização naquele ano.
Por nota, o MEC afirmou que R$ 1,2 bilhões foram ao menos empenhados em dezembro no Compromisso Nacional Criança Alfabetizada em 2023. Ainda segundo o MEC, o recurso foi destinado aos estados e municípios que aderiram o programa, além de financiamento de bolsas para articuladores regionais e oferta de formação aos profissionais de educação infantil. A reportagem não conseguiu confirmar as informações apresentadas pela pasta no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop).
Cabe ao MEC orientar as políticas educacionais dos municípios
Assim como Camilo Santana, Maria Izolda Cela, secretária-executiva do MEC, também é do Ceará. O cargo dela é considerado o segundo mais importante de um ministério. Maria Izolda passou, inclusive, pela secretaria de Educação do município de Sobral (CE), que possui os melhores índices de alfabetização do Brasil. Camilo Santana e Maria Izolda também já atuaram juntos ao assumirem, respectivamente, os cargos de governador e vice-governadora do estado em 2014 e 2018. A experiência de ambos gerou uma certa expectativa de avanço na área de alfabetização, mas que neste primeiro ano de gestão não se consolidou.
Os parâmetros de excelência utilizados em cidades como Sobral, por exemplo, não são, nem de longe, citados no documento de formação continuada do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. “É um documento que não fala de fluência em leitura, de decodificação, de princípio alfabético. Provavelmente será mais uma política ‘mais do mesmo’. Torço pelo sucesso, porque estamos falando de crianças, mas pela falta de boas diretrizes será difícil”, completa Gomes.
Essa falta de orientação não prejudicará as cidades que possuem bons resultados educacionais, já que elas darão continuidade ao trabalho que tem sido feito. Ao mesmo tempo, as secretarias municipais de educação que precisam de suporte não receberão os subsídios necessários, como foi feito no projeto “Tempo de Aprender”, do governo anterior, o que tende a aumentar ainda mais a desigualdade educacional no país.
Alfabetizar crianças até o 2º ano é uma meta antiga
O objetivo do Compromisso de alfabetizar 100% das crianças do 2º ano do ensino fundamental não é inovador. Essa é a meta 5 do Plano Nacional de Educação (PNE) em vigor, que cria diretrizes para ações em educação de 2014 a 2024. A meta 5 se divide nas áreas de língua portuguesa e matemática. O indicador usado é o resultado do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), aplicado para medir o conhecimento de alunos do 2º ano do ensino fundamental 1, 9º ano do ensino fundamental 2 e 3º ano do ensino médio.
Para avaliar a meta 5 do PNE são considerados os resultados do Saeb referentes ao 2º ano. Apesar da meta ser antiga, o Brasil não parece perto de alcançá-la. De acordo com a plataforma QEdu, o percentual de estudantes do 2º ano de escolas públicas com o nível de proficiência adequado em leitura caiu de 55% em 2019 para 36% em 2021. Entre as duas edições, houve a pandemia da Covid-19. O Brasil foi um dos países que manteve as escolas fechadas por mais tempo, o que gerou um impacto o qual ainda não foi possível dimensionar completamente.
Ainda de acordo com os resultados do Saeb de 2021, 61% dos alunos do 2º ano estão entre o nível 0 e 4. Sendo 23% deles no nível 0 ou 1, o que implica na incapacidade de ler palavras com três ou mais sílabas, com apoio de imagem, a partir de um ditado. Apenas 39% (nível 5 ao 8) conseguiram demonstrar habilidades como localizar informações explícitas em textos curtos (de quatro a seis linhas) como bilhete, crônica e fragmentos de conto infantil, inferir assunto de cartaz e informações em textos que usam linguagem verbal e não verbal, como tirinhas.
“Não se avança porque o ensino é deficiente. É necessário um esforço que acaba brigando com preferências políticas. É preciso oferecer aos professores uma formação baseada em evidências científicas, apresentando pontos específicos que vão fazer com que o aluno aprenda muito mais rápido. Mas existe resistência de todos os lados”, analisa Fábio Gomes.
Ao considerar o nível de leitura dos estudantes de 2º ano de escola privada, a queda foi muito menor entre as edições de 2019 e 2021, saindo de 82% para 79%. O QEdu utiliza a escala de proficiência do professor Chico Soares, que chegou a ser adotada oficialmente pelo Inep quando o docente ocupou a cadeira de presidente do órgão. Atualmente, o MEC não possui uma escala oficial. O QEdu é uma plataforma idealizada pela Fundação Lemann e pela empresa Meritt, que tem como objetivo facilitar o acesso a dados e informações relacionados à educação.
Novo PNE está em discussão
O MEC chegou a realizar reuniões com servidores internos e representantes de outros órgãos para discutir sobre o novo PNE, durante o ano de 2023. O objetivo era fazer um balanço do último plano e levantar os problemas educacionais atuais, para, a partir disso, elaborar as metas dos próximos dez anos. Porém, o trabalho não chegou a ser concluído. Posteriormente, a pasta decidiu discutir o assunto com estados e municípios durante a Conferência Nacional de Educação, que já tinha sido convocada.
Em janeiro, acontecerá a etapa nacional da Conferência Nacional de Educação em Brasília. Apresentado pelo MEC, o documento usado para basear as discussões no evento trata de diversos temas ideológicos. De oposição ao agronegócio em sala de aula a questões sindicalistas como aumento do piso salarial de professores. Depois de todas as etapas, o MEC deverá apresentar o texto final do PNE ao Congresso Nacional. Caberá aos parlamentares da oposição impedir o avanço da ideologização na educação ao trabalhar na alteração do projeto.
Por Marlice Pinto Vilela
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