Mais de 1 milhão de estudantes estão em cursos de licenciatura a distância, mas até 66% deles abandonam a formação antes da conclusão
O Brasil enfrenta um paradoxo na formação de professores: a oferta cresce, mas também aumentam a evasão e os baixos índices de empregabilidade, especialmente nos cursos de licenciatura a distância. Segundo o Censo da Educação Superior, 67% das 1,7 milhão de matrículas estão na modalidade EAD, cuja evasão chega a 66% em algumas instituições.
Apesar do número expressivo de estudantes, a formação de qualidade segue restrita. A maioria dos concluintes de cursos a distância não consegue se inserir nas redes públicas de ensino, onde a concorrência é alta e exige preparo consistente. A principal crítica de especialistas é a baixa qualidade de muitos cursos ofertados nesse modelo, que não garantem inserção no mercado e tampouco preparam adequadamente os estudantes para a docência.
O professor Marcos Neira, professor titular do Departamento de Metodologia de Ensino e Educação Comparada da Universidade de São Paulo (USP), alerta que a pluralidade de ofertas, sem regulação e articulação prática, enfraquece o preparo dos docentes: “A sala de aula exige vivência, domínio de conteúdo e prática supervisionada”, explica.
Para especialistas, o maior desafio não é atrair, mas manter professores nas escolas. E isso só será possível se a formação for mais conectada com a prática. “A formação começa na universidade, mas só se completa na escola, com apoio dos mais experientes”, afirma a professora Laurizete Passos, da PUC-SP.
“As escolas e secretarias precisam cuidar da entrada do professor, como outras profissões fazem com o estágio supervisionado. Isso exige coordenação, acompanhamento e um pacto real de valorização”, diz.
Programa federal mira atratividade e permanência na docência
Diante da crise na formação e na atratividade da carreira, o Ministério da Educação lançou em janeiro o Programa Mais Professores para o Brasil, com ações distribuídas em cinco eixos: seleção, atratividade, alocação, formação e valorização dos docentes.
Segundo o MEC, o objetivo é sistêmico: formar mais e melhores professores, atrair jovens com bom desempenho no Enem e reverter o desinteresse por licenciaturas, especialmente nas áreas de Ciências e Matemática, onde o déficit de profissionais é mais grave.
Entre as iniciativas, destacam-se as bolsas financeiras. A Bolsa Pé-de-Meia Licenciaturas oferece R$ 700 por mês, além de R$ 350 em uma poupança resgatável após o ingresso na rede pública. Já a Bolsa Mais Professores paga até R$ 2.100 para quem atuar em regiões de difícil provimento ou em disciplinas críticas.
Laurizete vê com otimismo o programa federal, mas reforça que ele é um ponto de partida. “É uma tentativa importante de reorganizar a carreira e enfrentar a evasão. Mas só será efetivo se houver articulação entre universidades, estados e municípios.”
Outro pilar do programa é a Prova Nacional Docente, criada para substituir editais municipais e estaduais com critérios inconsistentes. A avaliação unificada visa criar um banco de talentos nacional, que redes públicas poderão usar em seus processos seletivos.
“Hoje, bons professores podem ser excluídos por provas mal elaboradas. A prova nacional traz justiça e padronização, com bibliografia atualizada e critérios pedagógicos consistentes”, afirma Neira. Ele aponta também a redução de custos para os candidatos, que hoje pagam múltiplas taxas de inscrição em concursos municipais com poucas vagas.
O essencial para ensinar na escola de hoje
Enquanto o governo tenta conter a evasão com incentivos financeiros, histórias como a de Gabriella Martella ilustram o que ainda falta para reter bons professores.
Formada em Direito e Pedagogia, ela iniciou sua atuação na rede pública de ensino no começo de 2025, após decidir mudar de área e seguir o antigo desejo de ser professora. “Quis me formar com base sólida e com vivência real na escola”, afirma.
Gabriella optou por um curso presencial e avalia que a experiência em sala de aula foi essencial para lidar com os desafios do cotidiano escolar. “A prática revela coisas que nenhum conteúdo teórico sozinho consegue mostrar”, diz.
Para ela, programas como o Mais Professores são um passo necessário, mas ainda insuficiente: “Sem apoio contínuo, plano de carreira e formação prática de qualidade, a gente perde muita gente boa no caminho.”
Mesmo no início da carreira, Gabriella já percebe as lacunas entre o discurso da valorização docente e a realidade enfrentada na escola pública. “O que mantém a gente é a vontade de fazer diferença, mas isso precisa ser sustentado por políticas reais, não só promessas.”
A professora Laurizete Passos também reforça a importância de alinhar a formação docente às transformações sociais e digitais da sala de aula. “As novas gerações aprendem de formas diferentes. O professor precisa saber lidar com conceito novo de emergência, com o que não estava lá e agora está”, afirma.
Ela defende uma formação enraizada nos fundamentos da educação — filosofia, história, psicologia, didática —, mas que se atualize para enfrentar os desafios da era digital, sem perder de vista a interação humana como base do ensino.
“Precisamos que os jovens queiram ficar na profissão, queiram estar na sala de aula. Perseverar na docência passa pela qualidade da formação, pelas condições melhores de trabalho e pelo reconhecimento da profissão”, conclui.
Sem esse tripé, formar mais continuará sendo insuficiente frente ao desafio maior: manter bons professores em sala.
Evolução da Formação Docente no Brasil
1827–1890 – Início e legislação imperial
A formação docente começa com a Lei das Escolas de Primeiras Letras (1827), mas ainda sem cursos específicos. O ensino era realizado por autodidatas e profissionais liberais.
1890–1932 – Escolas Normais
As Escolas Normais são implantadas e se tornam o modelo nacional para formar professores do ensino primário.
1932–1939 – Institutos de Educação
Reformas educacionais modernizam a formação docente, criando Institutos de Educação e ampliando o foco para além do ensino primário.
1939–1971 – Licenciaturas e Pedagogia
Surgem cursos superiores de licenciatura e Pedagogia para formar professores do ensino secundário, enquanto as Escolas Normais seguem com a formação para o ensino primário.
1971–1996 – Habilitação de Magistério no Ensino Médio
A reforma de 1971 extingue as Escolas Normais e insere o magistério como habilitação no Ensino Médio. A formação superior continua obrigatória para o ensino secundário.
1996–2006 – LDB e exigência de nível superior
A LDB (Lei 9.394/96) exige formação superior para professores da Educação Básica, reorganizando os cursos de Pedagogia e criando novas instituições formadoras.
2002 em diante – Diretrizes e expansão do EAD
As Diretrizes Curriculares Nacionais orientam os cursos de licenciatura. A modalidade EAD cresce, junto com debates sobre a BNCC e qualidade da formação.
2025 – Programa Mais Professores para o Brasil
O governo federal lança um programa com ações para valorizar, qualificar e incentivar a docência na educação básica, marcando uma nova fase nas políticas públicas para o magistério.
O Estadão
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