“Se não saímos mascarados nas ruas,
ficamos escondidos em casa, atrás de pseudônimos, a usar nossos teclados para
agredir as pessoas. Postando na rede os nossos coquetéis molotov. Quebrando
dali as nossas vidraças” Por: Rudolfo Lago
Sou jornalista, não apenas por
formação profissional, mas por espírito. Muito, muito antes de sair da
faculdade com o diploma debaixo do braço, eu já era jornalista. Pela
curiosidade incontrolável. Pelo cacoete de sempre tentar me distanciar das
pessoas e das coisas por um tempo para poder vê-las e compreendê-las melhor.
Pelo esforço imenso que sempre fiz para não ter preconceitos. Pelo gosto, pelo
bom debate inteligente. E, é claro, pela defesa incondicional da liberdade de
expressão, guardados os excessos, para os quais o caminho correto sempre será a
Justiça.
Assim, é evidente que discordo
profundamente, frontalmente, totalmente, dos posicionamentos dos artistas do
grupo Procure Saber quanto à questão das biografias não autorizadas. Como muita
gente, também tenho me espantado muito ao ver sair da boca desses artistas
argumentos que eu realmente não esperava deles.
Agora, não será por isso que eu
vou deixar de ouvir e de admirar o trabalho de gente como Chico Buarque, Milton
Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Não será por isso que vou renegar a
importância profunda que eles tiveram para a minha formação cultural.
Que sem os versos de Chico
Buarque, eu não teria chegado aos versos de Vinicius de Moraes. E daí aos de
Drummond, Manoel Bandeira… Que sem Milton, eu não teria ido às Geraes. E das
Geraes chegado a Guimarães Rosa. Sem a descoberta do tropicalismo de Caetano e
Gil, talvez eu não fosse chegar aos modernistas, a Oswald de Andrade, a Mario
de Andrade, ao seu Macunaíma. Talvez não fosse apresentado a Glauber Rocha.
Certamente em vários momentos das suas vidas, todos esses citados – e muitos
outros artistas que admiro – fizeram e disseram coisas que eu não faria e das
quais discordo frontalmente. O que não me faz deixar de admirá-los.
E aqui chego ao ponto: até quando
vai durar essa maldita era da desqualificação absoluta daqueles de quem
discordamos? Eu li gente no Facebook citando a frase de Caetano Veloso em Sampa
(“Narciso acha feio o que não é espelho”) para criticá-lo pela posição contra
as biografias não autorizadas. E emendando em seguida que Caetano virou um
chato que só fala besteira (“Narciso acha feio o que não é espelho”).
O ser humano nunca teve como hoje
tanto espaço para debater e expor suas ideias. E nunca foi tão raso e
preconceituoso ao fazer isso. Eis o paradoxo do nosso tempo. Quem quer que
elogie o governo e o PT vira automaticamente de esquerda e progressista. Quem
quer que critique o governo e o PT pelo que for é de direita e reacionário. As
mesmas frases podem ser ditas em sentido inverso, trocando o PT pelo PSDB.
Dependendo do time político para
os quais torçam, tudo o que façam ou digam torna-se automaticamente perdoado
por suas respectivas torcidas. E motivo de ataque para a torcida adversária. Em
vez de debates, trocas de insultos. Imensas pedradas virtuais. Cada computador,
uma trincheira.
No fundo,
não espanta que as ruas andem infestadas de malucos insanos, quebrando
vidraças, tocando fogo em automóveis, jogando coquetéis molotov em prédios
públicos e monumentos. No fim, os black blocs talvez sejam
apenas a manifestação física daquilo que há tempos já vínhamos nos acostumando
a fazer no mundo virtual. Quantas vezes eu li aqui mesmo nos comentários feitos
neste veículo de comunicação leitores pregando que “tem
que quebrar tudo”, “tem que jogar uma bomba no Congresso” e outras coisas do
gênero?
Viramos isso. Essa horda. Se não saímos
mascarados nas ruas, ficamos escondidos em casa, atrás de pseudônimos, a usar
nossos teclados para agredir as pessoas. Postando na rede os nossos coquetéis
molotov. Quebrando dali as nossas vidraças.
E ajudando a reproduzir um tempo em que
as nuances, os detalhes, são esquecidos na ânsia da simplificação apressada.
Tudo é branco ou preto. Vermelho ou azul. Progressista ou reacionário. Um mundo
ao qual reagimos apertando ou não um botão. “Curtindo” ou não “curtindo”.
Eu não quero cair nessa. Discordo
inteiramente deles na questão das biografias. Mas Chico, Milton, Caetano e Gil
continuarão sempre tocando no CD do meu carro. E me emocionando do mesmo jeito.
Por: Rudolfo Lago
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