“Temos censura que não tivemos nem na ditadura”, afirmou o ator Antônio Fagundes em entrevista à Isto É.
O Brasil vive, de fato, um momento espantoso, embora não de todo
surpreendente para quem esteve atento nos últimos dez anos. A liberdade
de expressão e de opinião está a um passo do cadafalso. E não, o
problema maior nem é o partido que nos governa e os seus anseios de
submeter os meios de comunicação ao seu jugo. Tal pulsão ditatorial
existe e preocupa, é claro, mas gostaria de tratar aqui da sociedade
como um todo, e não dos donos do poder, que poderiam menos, caso
encontrassem uma cultura madura e capaz de resistir a fantasias
tirânicas – o que definitivamente não é o caso do Brasil atual.
Os sinais de sufocamento das liberdades são muitos e alarmantes, a começar por este inacreditável “Procure Saber”,
movimento liderado por artistas que uma sociedade sem parâmetros
transformou em ídolos sacrossantos, e que agora almejam, com escandalosa
sem-cerimônia, censurar biografias, um gênero literário já tão escasso
no país.
Há também um clima generalizado de patrulha politicamente correta,
que estimula reações histéricas e processos, como o que foi movido
recentemente contra o humorista Danilo Gentili por uma senhora
melindrada. A jornalista Rachel Sheherazade, por sua vez, teve sua
cabeça pedida por organizadores de uma petição que exigia – como quem
reivindica um direito natural inalienável – a sua demissão da emissora
em que trabalha, além de pedidos públicos de desculpas. O delito? A
jornalista fez críticas aos ativistas dos direitos dos animais que
invadiram e depredaram o Instituto Royal. Parecia até que quem cometera
crimes fora aquela, e não estes.
Outro caso chocante ocorreu na Flica (Festa Literária Internacional
de Cachoeira), na Bahia, onde estudantes e membros do movimento negro
impediram à força – sem que os organizadores do evento demonstrassem
firmeza para os coibir – as falas dos intelectuais e articulistas Luiz
Felipe Pondé e Demétrio Magnoli. Os jovens censores, agindo como os
“comissários do povo” dos tempos de Stálin ou Mao Tsé-Tung, chegaram a
se despir (o que, hoje, é a forma mais elevada de protesto que aquelas
cabecinhas ocas são capazes de conceber) e jogar uma cabeça de porco no
palco. A intenção era clara: marcar como párias os dois palestrantes,
afirmando que a eles não se deve dar o direito à palavra, uma vez que as
suas opiniões excluem-nos do rol de homens respeitáveis, quiçá da
espécie humana (e rótulos difamatórios tais como “reacionário”,
“burguês” e “racista” servem precisamente à desumanização e
dessubjetivação do outro). Os organizadores da Flica, ao que parece,
cederam.
E, por último, mas não menos importante, temos a ombudsman da Folha de São Paulo,
Sra. Suzana Singer – irmã de André Singer, porta-voz da Presidência da
República no primeiro governo Lula e petista de carteirinha –, chamando o
seu colega, o jornalista e blogueiro Reinaldo Azevedo, de “rotweiller”,
e, na prática, reprovando a sua contratação como colunista do jornal. A
não ser por um desejo de lançar um estigma sobre o colunista – uma
cabeça de porco retórica –, prevenindo os leitores da Folha para que não
o lessem, a agressividade da ombudsman não se explica.
Como se não bastasse, a jornalista Miriam Leitão decidiu escrever um
texto – clamando, pasmem!, por um debate de alto nível – no qual dava
total apoio à ofensa destemperada da Sra. Singer. “Recentemente, Suzana Singer foi muito feliz ao definir como ‘rottweiller’ um recém-contratado pela ‘Folha de S. Paulo’ para escrever uma coluna semanal”, lê-se no artigo.
O texto lamentava a “miséria” e o “emburrecimento” do debate público
brasileiro, imputados à atuação tanto de radicais de esquerda quanto de
direita. No entanto, adotando uma posição pretensamente equilibrada e
centrista (que eu costumo chamar demeiotermismo dogmático, o fetiche
pelo meio-termo, ainda que entre o certo e o errado, o justo e o
injusto, as vítimas e os agressores), a Sra. Leitão logo deixou para lá
os radicais de esquerda – que, no texto, ela chama de “suposta
esquerda”, como quem sugere que uma esquerda verdadeira, não “suposta”,
jamais agiria daquela maneira radical (e ora me pergunto em que planeta
ela esteve durante todo o século XX) –, preferindo concentrar os ataques
no que qualificou de “direita hidrófoba”. O rótulo pejorativo
referia-se, sem que autora citasse os nomes, a Reinaldo Azevedo, mas
também ao economista, e articulista do Globo e da Veja, Rodrigo Constantino, autor do recém-lançado A Esquerda Caviar
(Rio de Janeiro: Record, 2013). Por já ter dado umas boas lições de
economia à Sra. Leitão, e também por haver criticado o seu pueril
entusiasmo feminista diante da escolha de uma mulher para comandar o
FED, Constantino foi alvo do rancor da jornalista, que o qualificou como
“um desses articulistas que buscam a fama.”
Se, como os censores da Flica, a Sra. Langer jogara a sua cabeça de
porco no palco midiático, a Sra. Leitão, por sua vez, optou por se
despir também como aqueles, revelando toda a sua intolerância e espírito
policialesco.
Todos os casos acima elencados sucederam-se no intervalo de não mais
do que duas semanas. Se seguirmos nesse ritmo, 1984 é logo ali.
George Orwell, aliás, autor da célebre obra de denúncia aos métodos
totalitários soviéticos, identificou um problema semelhante ao nosso
entre os jornalistas e formadores de opinião na Inglaterra do seu tempo;
muitos deles simpáticos ou, no mínimo, silenciosos em relação ao que se
passava na URSS. Destacando o papel que a decadência da linguagem
pública – lá, como aqui, engessada por veladas adesões ideológicas,
afetações de bom-mocismo e crises agudas de meiotermismo dogmático –
desempenhava na política, Orwell não poupou os seus contemporâneos – as
Suzanas Singers e Mirians Leitões da época – de duras críticas. O quadro
que ele descreve em “A Liberdade de Imprensa” (1945), prefácio original escrito para A Revolução dos Bichos, é lobregamente familiar: “O
fato sinistro em relação à censura literária na Inglaterra é que ela é,
em grande medida, voluntária. Idéias impopulares podem ser silenciadas,
e fatos inconvenientes mantidos no escuro, sem a necessidade de uma
proibição oficial. Quem morou muito tempo num país estrangeiro saberá de
exemplos de notícias sensacionais – coisas que por seus próprios
méritos ganhariam grandes manchetes – que ficaram de fora da imprensa
britânica, não porque o governo interveio, mas devido a um acordo tácito
geral de que ‘não seria conveniente’ mencionar aquele fato em
particular.”
Como, lendo isso, não lembrar do empenho da nossa imprensa em,
primeiro, ocultar a existência do Foro de São Paulo, e depois, quando
isso já não era possível, minimizar a sua importância? Mas Orwell não
pára por aí. Linhas adiante, é como se falasse de nós: “Em qualquer
momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de idéias que se supõe que
todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar. Não é
exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas é ‘impróprio’ dizê-lo,
assim como na época vitoriana era ‘impróprio’ mencionar calças na
presença de uma senhora. Quem desafia a ortodoxia dominante se vê
silenciado com surpreendente eficácia. Uma opinião genuinamente fora de
moda quase nunca recebe uma atenção justa, seja na imprensa popular ou
nos ditos periódicos cultos (…) Desde que o prestígio da União Soviética
não esteja envolvido, o princípio da liberdade de expressão tem sido
razoavelmente mantido. Há outros temas proibidos (…), mas a atitude
predominante em relação à União Soviética é o sintoma mais grave. É
como se fosse espontânea e não se devesse à ação de nenhum grupo de
pressão (…) A intelligentsia literária e científica, as próprias pessoas
que deveriam ser os guardiões da liberdade, começa a desprezá-la, tanto
na teoria como na prática.”
Orwell não estava sozinho. A escritora britânica e prêmio nobel de
literatura Doris Lessing – nascida, de fato, no Curdistão, e criada na
Rodésia (atual Zimbábue) – também denunciou essa espécie de
totalitarismo difuso, que ela associava então à emergência do
“politicamente correto”. Autora, entre outros livros, de A Canção da Relva,
uma sutil obra-prima contra o racismo onipresente na sua bem conhecida
África Austral (lembrando que Lessing foi banida da Rodésia e da África
do Sul por sua oposição ao apartheid), ela escreveu um vigoroso
ensaio-denúncia intitulado, sem mais, “Censura”.
Parecendo dar razão à opinião de Antônio Fagundes, Lessing comenta naquele ensaio: “A
censura direta e não ambígua, como parte do controle estatal, é mais
fácil de combater do que os resultados indiretos dela (…) Há certas
épocas e espaços em que fazemos conluio com a tirania, de maneiras mais
diretas do que simplesmente não notar o que se passa (…) Uma coisa
chocante: mas todos temos censores internos, e frequentemente não
suspeitamos disso. É difícil escapar de um modo predominante de pensar,
particularmente quando você está convencido de viver numa sociedade
livre (…) A mais poderosa tirania mental naquilo que chamamos de mundo
livre é o Politicamente Correto, que é tanto e imediatamente evidente,
observado em toda parte, quanto invisível, qual um gás venenoso, pois
suas influências estão frequentemente distantes da fonte originária,
manifestando-se como uma intolerância generalizada (…) O problema é que
as pessoas que precisam da rigidez, dos dogmas, das ideologias são
sempre as mais estúpidas, portanto o
Politicamente Correto é uma máquina auto-perpetuadora de afastar os
inteligentes e os criativos. Ele está formando uma classe de pessoas –
pesquisadores, jornalistas, educadores em particular – exiladas em sua
própria cultura, por vezes mantidas em empregos inferiores, ou mesmo
desempregadas, e, no entanto, elas são frequentemente as melhores, as
mais inovadores, as mais flexíveis (…) As intolerâncias religiosas foram
sucedidas pelo comunismo, o seu reflexo no espelho, que armou o palco
para o Politicamente Correto. O que vem a seguir?”.
Não sabemos. Mas o fato é que, salvo raras e honrosas exceções, os
formadores de opinião no Brasil – alguns por fanatismo ideológico,
outros por dinheiro, outros ainda por pura covardia – têm criado uma
verdadeira “máquina auto-perpetuadora” contra opiniões diversas e
independentes. A censura é, em larga medida, “voluntária”, no sentido
denunciado por Orwell. Sendo assim, o antigo projeto do partido
governante de controlar a imprensa – com essa tão sonhada “lei dos
meios” – periga restar desnecessário, uma vez que profissionais como a
Sra. Miriam Leitão, e muitos outros da mesma cepa, parecem ter se
oferecido docemente como fiscais das opiniões de seus pares.
Fagundes está certo. Se, durante a ditadura, tínhamos uma censura
autoritária e visível (frequentemente burlada, como muitos artistas e
jornalistas da época já cansaram de confessar, até com certa graça),
hoje temos uma censura totalitária, invisível, grave, onipresente. Ela
não comporta gracejos nem brechas. Se, antes, ela vinha exclusivamente
do governo, hoje ela é mais de tipo soviético-chinês, e o censor pode
estar ao lado. No fim das contas, a verdade é que, como concluiu
Lessing, “os amantes da autoridade, não importa o quão cruel, estarão sempre entre nós.”
Artigo publicado no site Revista Vila Nova
Por: Flávio Gordon tem 34 anos, é carioca, casado, doutor em antropologia, autor do blog “O Brasil e o Universo: crônicas sobre a surrealidade política e cultural brasileira” e, assim como o saudoso poeta Bruno Tolentino, também quer o seu país de volta.Via: Debatescultutais.com.br
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