Por: Jenner Barreto B. Filho
O
poder transformador da educação se manifesta quando esta é voltada para
a autonomia. Entendemos por educação para a autonomia quando se
estabelece a seguinte relação de reciprocidade: quem educa, também se vê
educado, e quem se vê educado por uma pessoa, também a educa; trata-se
de um processo necessariamente de mão dupla, no qual não se admite
apenas a existência de ouvintes meramente taciturnos e nem tampouco de
locutores tagarelas que emitem pareceres, mas não escutam os pareceres
dos demais envolvidos no grande diálogo educacional. Entendemos também
por educação para a autonomia como sendo algo que se constitua na
procura obsessiva de duas características precípuas: (i) a primeira, é a
da compreensão genuína do teor em questão; (ii) a segunda consiste em
colocar-se como protagonista e, como consequência, assumir o compromisso
de adotar atitudes e procedimentos éticos e proativos compatíveis com o
que faz um ator que se manifesta de maneira afirmativamente prudente no
mundo em que se encontra, sem medos nem arrogâncias, mesmo diante das
imensas dúvidas que atingem a todos sem exceção.
A categoria compreensão remete para o aspecto cognitivo e para fixar
melhor as ideias tomemos um exemplo do que podemos entender por
compreensão genuína do teor em questão. Seja o teorema de Pitágoras da
geometria euclidiana segundo o qual a soma dos quadrados dos catetos é
igual ao quadrado da hipotenusa. Ora, aquele que se esforçou para
entender este teorema, sem qualquer perda de generalidade, tem plena
convicção de dominar um conhecimento claro e distinto, ou ainda
autoevidente, como diriam Descartes (1596-1650) e Pascal (1623-1662).
Decerto, tal como se sabe pelo menos desde o século XIX, existem as
geometrias nãoeuclidianas que são ainda mais gerais que a euclidiana e o
mundo não é tão claro e distinto como se pensava no século XVII;
sabemos que a realidade é muitíssimo mais complexa do que pensava a
nossa vã filosofia. Contudo, podemos tranquilamente asseverar que quem
entende genuinamente o teorema de Pitágoras e, por conseguinte, toda a
trigonometria correspondente, adquire a partir daí uma autoconfiança que
torna ridícula qualquer decoração não acompanhada de compreensão, bem
como toda a sorte de macetes mnemônicos que são o avesso da autonomia
intelectual.
Não faltariam aqueles que argumentariam que em um sistema educacional
deficiente como o nosso, repleto de professores insuficientemente
preparados, pensar em autonomia intelectual, não passaria de uma utopia,
pois até mesmo para conhecimentos que se apresentem para as nossas
mentes com clareza meridiana como o teorema de Pitágoras, ainda assim,
haveria quem optasse pelos macetes mnemônicos e outros truques, em
detrimento mesmo de uma desejável compreensão genuína. Ora, tal como é
óbvio, uma atitude do gênero não contribuiria para formar pessoas
conscientes e nem tampouco para formar bons cidadãos. Enfatizemos que a
utopia existe é para que seja tenazmente perseguida e mesmo que não seja
alcançável, ao persegui-la podemos nos deparar com o melhor cenário
possível. Nada nos recomenda a abandoná-la e se as novas tecnologias
existem, então elas tem que ser aproveitadas no sentido de contribuir
para prover autonomia e não para dispensá-la.
Passemos agora a tecer comentários sobre o que podemos conceber por
protagonismo e por adoção de atitudes e de procedimentos proativos e
éticos perante o mundo. É fato que uma cabeça bem feita é bem melhor do
que uma cabeça meramente cheia. É também fato que uma cabeça “vazia”
também não pode se constituir em uma cabeça bem feita, pois conteúdos
(não conteudismo inconsequente) são imprescindíveis para formar boas
cabeças. Logo, não se pode dispensar do discernimento dos atores da
educação. É justamente este discernimento que, à luz de uma dada
concepção, embasa a escolha de quais conteúdos devam ser considerados
como imprescindíveis. Escolher-se-á um núcleo de conteúdos que favoreça a
procura da autonomia intelectual e não um espectro imenso de teores que
não são hierarquizados em graus de importância, o que pode redundar na
falta de discernimento do que seja mais fundamental e do que seja menos
fundamental e, ainda pior, que favoreça o surgimento de macetes
mnemônicos na contramão mesmo da autonomia intelectual. Deste modo, uma
eventual mudança na organização curricular deve portanto ser gradativa e
a cada passo refletida. Uma mudança repentina de uma organização
curricular disciplinar para uma supostamente interdisciplinar não pode e
não deve se dar abruptamente, pelo menos por três razões: primeiro,
porque um conhecimento interdisciplinar requer conhecimento de
disciplinas que o sustentem; segundo, porque as pontes entre as
disciplinas não são dadas a priori; elas precisam, de fato ser
construídas; terceiro, porque a formação de professores segundo uma nova
organização curricular deve necessariamente ser gradativa. Acreditamos
portanto que qualquer que seja a educação genuína, ela terá que se
pautar pela procura incessante e eternamente recorrente das autonomias
intelectual e política dos indivíduos.
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