O medo nos vendeu muitas respostas. O medo da saúde pública não te deixa atrasar o plano de saúde, o medo da educação pública também coloca no débito automático a mensalidade do colégio dos filhos. Ele está sempre por ali, rodeando.
O medo quase não consegue sobreviver sozinho, ele precisa da sua irmã, a incerteza. O medo acontece quando esquecemos de um compromisso e recebemos a ligação de quem está nos esperando, quando nossa atitude é o inverso de nossas palavras exatamente no momento em que somos pegos por nossos filhos, ou pais, ou amigos. O medo real é instantâneo, ele acontece nos “aquis e agoras” da vida. A faca no nosso pescoço nos dá medo, sem dúvida, a arma na nossa têmpora no trânsito, o dedo do chefe na nossa cara nos despedindo, as pessoas que amamos no momento em que decidem se afastar de nossas vidas. Esse é o medo. O resto é incerteza.
A incerteza é o medo projetado. Medo da repetição do passado doloroso projetado no presente, medo do imprevisto do futuro, do incerto, do “destino”, também projetados no nosso presente. Não duvido de que a maior parte do consumo do mundo seja gerado pela incerteza. A incerteza gera ansiedade e essa vende remédios como ninguém para a indústria farmacêutica, por exemplo. Ou aquele sapato lá do primeiro parágrafo.
Parece simples saber o que se quer, não? Freud diz que grande parte de nossa motivação é inconsciente. É freqüente que se aja (ou melhor, se reaja) sem consciência do que nos motiva. Toda cultura conspira para convencer seus membros a adequar seus desejos ao que é considerado “certo” e “bom”. Os bons capitalistas competem e consomem. Os bons comunistas não (teoricamente). A indústria da publicidade baseia-se em premissas muito simples: os seres humanos desejam muitas coisas, mas não sabem exatamente o que os satisfaz. E é bom que não saibam, porque assim é possível usar a propaganda como condutor do foco. O foco leva a energia e a energia desperdiça a si mesma levando, consigo o tempo e o dinheiro.
Grande parte do medo vem do que não se conhece, da ausência de informação e do excesso de tentativas constantes de formação de opiniões com interesses distintos. O problema é que um mecanismo gerado para promover o constante consumo de diferentes produtos vai mudar de ideia constantemente sobre o que deve ser comprado e, é claro, pensado.
“Aquele que teme algo confere a isso poder sobre ele.” – Provérbio Árabe
Qual será o melhor critério para comprarmos o sabão em pó? A confiança na marca mais antiga? A inovação da marca mais recente? O preço? A beleza e praticidade do design da embalagem? Critérios diferentes levam a soluções diferentes. A questão é que os critérios externos são mutáveis demais para que possamos confiar plenamente neles, o que leva ao que o sociólogo Richard Sennett denominou como “Corrosão do Caráter”. O mesmo ponto que o seu colega de profissão Zygmunt Bauman critica como excessivamente “líquido”, inconstante e fluido.
O medo nos leva a temer o novo, a arraigarmos nosso ethos (cola social, o que mantém uma sociedade unida) a uma estrutura política – uma estrutura de interesses – decadente. Perguntar-se “o que eu quero de fato?” não é apenas arriscado, é revolucionário! É a ante-sala da liberdade! E a liberdade tem um preço, assim como descobrem os adolescentes quando resolvem morar sozinhos, procurar um emprego, definirem carreiras.
É perfeitamente compreensível que essas memórias ásperas possam ser petrificadas dentro de uma personalidade frágil, mas se erigirmos um caráter forte – o tipo de caráter que não interessa para a sociedade de hiperconsumo em que vivemos, porque consome menos paliativos para medos difusos -, com base em valores que possam ser defendidos por todos, em todos os momentos e lugares, na favela e no asfalto, para o negro e para o branco, para o jovem e para o idoso, mulher e homem, hétero ou homo, enfim, se formos capazes de nos tornarmos humanos a esse ponto, quem sabe tenhamos uma sociedade madura o suficiente para enfrentar diretamente os problemas que nós mesmos criamos, ao invés de nos sentirmos tentados a usar, para outros seres humanos, o mesmo mecanismo que usamos para nossos aparelhos digitais: “deu defeito? joga no lixo!”.
Para descobrir o que se deseja, é necessário ter essa espécie madura de coragem. Essa espécie de coragem apta a conviver num mundo plural e a lidar, diariamente, com as diferenças de modos, crenças, usos, saberes. É necessário também que os desvios graves e delitos pequenos sejam punidos, ambos, sempre com uma finalidade pedagógica.
Porque o dia em que abrirmos completamente mão da finalidade pedagógica nas punições necessárias em sociedade, será o dia em que estaremos assumindo que punimos para dar uma pós-graduação no crime, alojando pessoas em condições sub-humanas onde o ladrão se torna assassino, o assassino estuprador e o estuprador aprende a assassinar e a esconder o corpo da vítima. Quando deixarmos de tratar pessoas como lixo talvez sejamos melhores do que o nosso “lixo” interno, nossa ira, nossa raiva, nossa intolerância, que jogamos sobre eles.
A projeção do nosso medo, da nossa incerteza e da nossa ansiedade, gerando e aumentando a violência, o preconceito e a intolerância entre todos a todo tempo, numa constante guerra de “todos contra todos” é um dos maiores tapas com luva de pelica que o mundo pode nos dar, por estarmos abolindo, cada vez mais, a vergonha.
Quando o governador e o prefeito de uma cidade humilham, espancam e criminalizam a pobreza e os negros através de uma polícia que mais agride e mata do que defende e preserva, não podemos atender aos nossos mais mesquinhos desejos de conveniência e esperar que uma instituição assassina resolva o “problema” gerado pelo nosso descaso. Não podemos porque é conveniente. É de uma conveniência covarde. E essa covardia nada mais é do que uma rendição à ditadura do medo.
POr: Renato César da Costa Kress é brasileiro, poeta, escritor e nasceu no Rio de Janeiro no ano 82. Concluiu seus estudos secundários no Colégio Cruzeiro – Deutsche Schule. Lançou em 2000, aos 18 anos, o livro Consciência, sobre impactos do neoliberalismo nos países de terceiro mundo, livro este que começara a escrever dois anos antes. É co-fundador e co-editor da revista eletrônica www.consciencia.net, e membro do I-Latina.org. É diretor do Instituto ATENA e criador do treinamento registrado “A Jornada do Herói®”
0 Comentários